– Eu estou a caminho do castelo. – Neandro falou – Gostaria que você e o Nicardo viessem comigo.
– Mas por que nós dois? – perguntei apenas para disfarçar.
– Será bom que vocês contem a história. – Neandro sorriu – Fora que papai vai ficar muito feliz em rever-la.
– Eu? – desta vez estava realmente surpresa.
– Sim. – Neandro não parecia tão surpreso – Não se lembra que papai, ou melhor, o Rei Céleo sempre gostou de você?
– O rei? – perguntei novamente surpresa.
– Com calma você irá se lembrar! – Nicardo sempre tentando me consolar.
– E os outros? – perguntei.
– Eles decidiram ficar e descansar. – Neandro respondeu – Pelo visto viajar em um submarino deve ser mais cansativo do que imagino.
Na verdade não achava que pudesse ser, mas acreditava que estivessem cansados. Tudo o que nos aconteceu... foram coisas bem cansativas. Acho que não tiveram tempo para relaxar de verdade e recuperar todas as energias que foram perdidas.
O caminho para o castelo me trousse algumas recordações. Algo sobre como conheci Nicardo. Eu estava me lembrando. A feira não estava mais ali, porém o local continuava o mesmo. Eu não consegui me lembrar com clareza de tudo como me lembrei da época que morei com Linfa, mas estava feliz. Desde que cheguei a Capital que grandes progressos aconteceram.
A cidade começou a voltar na minha memória. A cada novo passo que dávamos era como se novas lembranças reaparecessem. Estava me lembrando das casas e da praça. Lembrei do grande relógio e de como consegui o primeiro cristal.
– Nicardo? – resolvi contar – Estou me lembrando de tudo!
– Tudo o que? – Nicardo tentava esconder a preocupação.
– Essa cidade. – sorri – Está tudo voltando a minha mente. Está vendo aquele relógio? Foi ali que achamos o primeiro cristal.
– Achamos? – Nicardo tinha um tom enciumado e preocupado na voz – Você estava com quem?
– Eu e... – um branco surgiu em minha cabeça – Eu e... você?
Nicardo suspirou aliviado e balançou a cabeça negativamente. Tentei lembrar quem estava comigo, mas Nicardo segurou minha mão e encostou minha cabeça o ombro dele. Já sabia o que significava: Não fique pensando nisso.
– Você está fazendo progressos. – Nicardo ficou serio – Não force tanto a mente. Deixe que as coisas voltem naturalmente. Acho que a aproximação sua com as lembranças que viveu com o Alexis estão te afetando de alguma forma.
– Será? – estranhei.
O castelo me trousse mais lembranças. Em sua maioria, lembranças ruins. Lembrei de ter sido amarrada e amordaçada. Lembrei também dos sentimentos de ódio e medo que passei ali. Deveria ser o último lugar que eu gostaria de estar, mas algo que não conseguia lembrar me deixou com a sensação de que tudo o que eu vivi ali valeu a pena.
As lembranças vinham mais rápido do que antes. O castelo havia se tornado um velho conhecido. Seria realmente a aproximação com o Alexis que estava fazendo a minha memória voltar? Mas então qual seria o motivo que impedia de eu me lembrar do Alexis?
Neandro entrou na sala do rei. Eu e Nicardo ficamos esperando. Pouquíssimos minutos depois Neandro nos chamou e entramos na sala. A lembrança foi imediata.
– Rei Céleo! – disse sorrindo.
– Beatriz, não sabe o quanto estou feliz em rever-la! – a voz do rei era um pouco triste e cansada.
– Você se lembrou! – Nicardo não parecia realmente surpreso.
– Pai, temos noticias ruins! – Neandro apressou o assunto.
Contamos tudo. Desde quando chegamos, a minha perca de memória, o reencontro com Thalassa, a fuga de Neide com a ajuda de Cosmo, o estado como as pessoas de Leander viviam e reencontro com Tales e nossa inútil ida a Calidora.
Contamos sobre Camila, Levinda e a Layla – que ainda não havia conhecido – e contamos também sobre a quase execução de Cosmo e como reencontramos Neandro e minhas súbitas recuperações de memória. Deixamos o Alexis para o final.
– Bem, eu estou aliviado e preocupado com tudo o que me contaram. – o Rei Céleo parecia bem abatido – Em partes é ótimo ter-la de volta Beatriz. Você sempre traz mais esperanças para as nossas vidas, mas me preocupo demais com essa sua perda de memória. Com as tropas de Bianor avançando tão rápido, temo que eles ataquem o nosso reino antes que recupere completamente a memória. Por maior que seja os seus avanços na magia, se não se lembrar de tudo você será inútil nas batalhas. Fico surpreendido que tenha sobrevivido a fuga de Calidora. A magia que você executou não é para qualquer um, exige muito treino e muita energia.
– Eu avisei a ela. – Nicardo estava serio.
– Alexis no bosque perdido também não me agrada. – Rei Céleo fitou o teto – Se ele realmente está lá e ainda não se transformou, isso significa que há algo no passado dele que está segurando no mundo exterior e não o deixa se transformar em um ser do bosque.
– O senhor está pensando o mesmo que eu? – Neandro perguntou.
– E bem provável! – o rei assentiu – As lembranças de Alexis com Beatriz são tão fortes e intensas que estão impedindo que ele se transforme completamente em um ser do bosque. O Alexis deveria ter me comunicado sobre essa busca ante.
– Papai? Já se esqueceu que estamos falando do Alexis? – Neandro brincou – Aquele ali sempre fez o que quis e nunca pensou nas consequências.
Por alguns segundos desprendi minha atenção da conversa e observei o quadro de família que estava pendurado no lado direito da sala. Do lado esquerdo estava Neandro, um pouco mais novo, ao lado da mãe. Do lado direito do quadro, ao lado da mãe, estava o Rei Céleo e ao lado do rei, no meio dos três, estava um garoto de cabelos castanhos e olhos vedes que eu sabia conhecer bem. Neste momento senti meu coração disparar desesperadamente e não consegui evitar imaginar como aquele garoto estaria agora?
De repente o quadro mudou. Estávamos eu e o rapaz do meu sonho, o Alexis. Eu estava no lugar da mãe de Neandro e Alexis estava no lugar do Rei Céleo. Não haviam crianças no quadro e estávamos com roupas da Terra, não com aquelas vestes do século passado como eram usados em Ofir. Fechei os olhos e balancei a cabeça. Quando abri novamente os olhos o quadro havia voltado ao normal.
– Beatriz? – o Rei Céleo me chamava enquanto todos me fitavam – Algum problema?
– Desculpe. – respondi constrangida – Nenhum.
– Como expliquei, terei que pensar com calma no resgate de Camila, Levinda e Layla. – o Rei Céleo deixou de me fitar – Tentar algo agora seria muito arriscado. Irei conversar com meus lideres de tropa e pensaremos em algo mais seguro.
– Mas é se Bianor conseguir as outras noivas? – perguntei.
– Caso isso aconteça, nós iremos apressar os planos. – Rei Céleo parecia estar fazendo o máximo para parecer bem – Não se preocupe, nós não iremos deixar que nada de ruim aconteça com suas amigas.
– E o Alexis? – Neandro perguntou.
– Neste momento acho que o melhor a se fazer e ficar na Capital mais alguns dias. Pelo menos até as coisas se acalmarem. – Rei Céleo ficou preocupado – Seria arriscado demais vocês seguirem para Menelau agora. Deve haver muitos soldados de Bianor atrás de vocês. Assim que as coisas se acalmarem um pouco mandarei alguns homens na frente, para dar cobertura, e depois vocês seguem. Nos tempos de guerra, mesmo quando há tréguas, todo o cuidado é muito pouco.
Voltamos para a casa de Neandro. A conversa com o Rei Céleo havia definido novos caminhos para nós e agora iríamos todos passar um temporada na casa de Neandro e Linfa.
As lembranças que havia recuperado estavam me fazendo mais mal do que bem. Eu estava mais confusa do que quando não me lembrava de nada. Eu fazia todo o esforço que era possível para me lembrar de Alexis, mas estava ficando difícil. Por quê?
O resto do dia foi normal e sem muitas coisas interessantes. A noite chegou bem rápido. Iríamos dormir eu e a Thalassa no quarto onde eu dormia. Nicardo, Tales e Cosmo iriam dormir na sala.
Aproveitei que estaríamos só eu e Thalassa sozinhas a noite toda para fazer uma perguntinha que não poderia fazer na frente de Nicardo. Apesar de já ter feito essa pergunta a ele diretamente.
– Como era o Alexis? – perguntei.
– Como? – ela pareceu se fazer de desentendida.
– Eu e o Alexis? – refiz a pergunta – Como éramos?
– Sem dúvida era algo forte. – Thalassa sorriu – Você brigavam feito cão e gato. Era sempre um implicando com o outro, sempre se xingando e quase se batendo. Mas qualquer um que olhasse de fora via que vocês se amavam.
– Amavam feito amigos?
– Feito amigos não. – ela se deitou em cima dos braços na cama improvisada no chão, fitando o teto – Talvez não parecesse que vocês... pudessem ser mais que amigos, mas não era um sentimento de amizade que saia de vocês. Era algo do tipo “pode acontecer”.
– Como assim algo do tipo “pode acontecer”? – por um instante me senti conversando com Camila.
– Não sei explicar. – ela sorriu – Mas era algo único, isso eu tenho certeza.
– Algo tão único a ponto de me fazer deixar o Nicardo?
Thalassa não respondeu. Ela continuou fitando o teto. Por alguns segundos o silêncio tomou conta do lugar e já era uma resposta mais que suficientemente completa, mas eu precisava ouvir.
– Thalassa? – voltei a perguntar – Era algo tão único a ponto de me fazer deixar o Nicardo.
– Isso é algo complicado. – ela se virou – Vocês dois sim, parecem amigos. Mas você e o Alexis... Beatriz, não dá para responder isso. Eu não sei o que se passa em você.
– Mas o que você acha? Pelo que você viu? – eu estava sendo chata. Admito.
– Olha... – Thalassa começou – Vou ser totalmente sincera com você.
– Eu não espero algo diferente! – apesar de já saber a resposta, eu estava ansiosa. Ouvir diretamente sempre é mais forte e definitivo do que entender por indiretas.
– Eu acho que você e o Alexis são almas gêmeas. – ela parecia não ter coragem de olhar para minha reação – Eu acho que sim. Era algo único o suficiente para fazer você deixar o Nicardo. Satisfeita? Agora me deixe dormir!
– Desculpe se te fiz falar o que não queria. – me senti culpada – Mas eu precisava ouvir isso. Eu tinha que ter certeza.
– Então você já sabia a resposta? – ela se levantou.
– Acho que eu sempre soube que o que tinha com o Nicardo iria acabar mais cedo ou mais tarde. A diferença é que agora eu sei o porquê.
– Então você irá deixar o Nicardo? – ela perguntou.
– Mas ainda não sei como. – me sentia muito culpada – Eu gosto demais do Nicardo, não queria magoar-lo. – Mas você sabe que, quando voltar toda a sua memória, não terá como fugir disso. A menos que decida esquecer o que passou co Alexis. Mas uma vez de volta a sua cabeça, acho difícil que consiga se esquecer novamente.
Dormir com as palavras de Thalassa foi uma tarefa difícil. Ela tinha razão. Quando tudo isso acabasse eu teria que tomar uma decisão. Eu iria ter que magoar Nicardo. No momento parece mais fácil dizer adeus ao Alexis, mas algo em mim dizia que não haveria outro caminho. Eu iria deixar Nicardo. Se já estava com essa certeza sem me lembrar de nada do Alexis, provavelmente quando estivesse com ele de volta a minhas lembranças...
Sonhei novamente com o nada. Mas desta vez eu estava com todas as minhas dúvidas e tormentos. Nem mesmo a música conseguiu apagar-los de minha mente. Eu estava morrendo de pena do Nicardo e me sentindo horrível por isso. Maldita hora que abri aquela caixa. Deveria ter jogado fora quando tive oportunidade. Ela não abria.
Aos poucos o cenário do sonho foi mudando. Pequenas projeções começaram a pintar o branco, como varias televisões congeladas em varias cenas da minha vida. Eu via cenas da minha infância, dos meus amigos e cenas em Ofir. Algumas eu já me lembrava, outras pareciam completamente inéditas para mim. Flutuei até o chegar ao topo. Eu estava cercada por lembranças. De repente uma das telas “ligou”.
Estava deitada, com um cavalo branco na minha frente. Montado nele estava o rapaz de cabelos castanhos que acreditava ser o Alexis.
– O que faz aqui? – o rapaz me perguntava autoritário.
Eu não respondia nada.
– Eu te fiz uma pergunta! – ele voltou a falar – Exijo uma resposta imediatamente.
Eu continuei sem dizer uma palavra e isso só piorou minha situação.
– Como ousa calar-se de maneira tão indelicada e rude para mim, não sabe quem sou plebéia? – ele começava a ficar irritado – Levante-se e responda minha pergunta, eu estou ordenando!
A tela escureceu. Ouvia apenas varias vozes dizendo “Príncipe Alexis” repetidas vezes, o que me deixou um pouco irritada. A imagem voltou a aparecer, mas desta vez era a sala do Rei Céleo.
– Não parece uma espiã de Bianor! – era o Rei Céleo quem falava.
– Mas deves admitir que nunca vimos tal moça antes. – o rapaz começava a falar. – Ela apareceu dentro das propriedades do castelo, nunca antes alguém conseguiu invadir com tanta facilidade os territórios reais. Ela só pode...
– Espere um pouco! – interrompi.
– Isto que disse sobre atrevimento exagerado? – um homem, com uma aparecia mais jovem que a do rei e uma voz um tanto afeminada falou.
– Sim, é exatamente isto! – o rapaz sorria maliciosamente.
– Vamos deixar a mocinha falar! – Rei Céleo parecia muito melhor do que quando havia o visto mais cedo.
– Obrigada! – fiz uma reverencia automática – Eu estava indo para escola quando passei na padaria com a Camila...
– Quem é Camila? – o rapaz parecia fazer de propósito.
– Camila é a minha amiga! – respondi educada.
– É onde está essa Camila agora? – o homem de voz afeminada perguntava.
Novamente a cena mudou. Estava dentro de um navio e estava vestindo uma roupa típica de marinheira. Estávamos eu, o rapaz de cabelos castanhos, Nicardo e Neandro conversando.
– Neandro! – o rapaz gritou – Não tinha outra roupa melhor?
– Mas essa é a roupa clássica! – Neandro respondeu sem entender.
– Pode voltar e usar uma de suas roupas! – o rapaz continuava gritando – E escolha uma que... Que tape mais as suas pernas!
– Mas está tão curta assim? – perguntei.
– Deixe-a usar a roupa Alexis, ela está muito bonita! – Nicardo disse enquanto carregava algumas cordas e respondeu a minha pergunta. O rapaz era realmente o Alexis.
– Não! – Alexis gritou – Isso não é uma roupa que a Beatriz usaria. Ela não gosta que esses lobos fiquem olhando tanto para ela.
– Olha aqui, que decide o que eu gosto ou não de usar sou eu! – agora eu quem gritava.
– Calma, calma! – Neandro tentava evitar uma briga.
– Então prefere ficar assim... Nua! – Alexis emburrou.
– Eu não estou nua. – rebati.
– Pois para mim está! – Alexis bateu o pé – Não gosto nada de ver você assim.
– Que é isso Alexis, está com ciúmes? – Neandro debochou da cara de Alexis.
– Ciúme? – Alexis ficou vermelho – Ciúmes desta ai?
Desta vez a cena não mudou, ela simplesmente acelerou. Nos rápidos flashs que passavam, vários momentos que vivi em Ofir pareciam voltar a minha cabeça. A sensação era sempre a mesma: Como se nunca tivessem saído de lá.
– Você está lembrando-se de mim agora? – era a voz dele. Alexis.
– Eu acho que estou. – respondi – Onde você está?
– Bem aqui. – senti braço me segurarem pelas costas – E pretendo continuar sempre aqui. Ao seu lado. Eu só estou vivo por causa disso.
– Alexis!
– Não diga nada ainda! – ele tapou minha boca – Eu vou esperar para ouvir o que você tem a me dizer quando me achar. Eu quero sentir que é real.
– Está bem. – eu sorri – Eu vou te achar.
– Estou esperando por você. – ele suspirou – Meu amor.
– Agora eu estou me lembrando de tudo. – estava em extrema felicidade - Nada irá nos separar outra vez.
– Eu realmente espero que seja assim. – ele passou a mão em meu rosto – Não gostaria que, depois de tanto esforço para me manter vivo, eu perdesse você outra vez.
– Você nunca mais irá me perder! – o abracei mais forte – Agora estaremos juntos para sempre.
– Mas você precisa me achar primeiro! – ele sorriu – Eu ainda não me lembro de tudo. Ainda não sei exatamente quem sou e nem como vim parar onde estou. Tudo o que eu me lembro e de você e apenas você é o que me faz querer continuar vivo.
Não esperei ele dizer mais uma palavra. Pulei no pescoço dele e o beijei. Não queria saber se era um sonho ou se era real. Tudo o que eu precisava naquele momento era sentir aquilo. Eu precisava – agora que havia recuperado minha memória – sentir aquele beijo do jeito que deveria ser.
– Não demore muito. – ele começava a sumir.
– Eu não irei esperar mais um segundo! – disse.
– Obrigado. – ainda pude ver seu sorriso.
– Espere mais um pouco. Eu já estou chegando!
– Eu vou esperar. – apenas a voz dele prevalecia – Eu vou esperar!
As cenas do meu passado continuavam ali e agora eu entendia o motivo de sempre estar ali, naquele nada. Minha mente já não tinha mais nenhum espaço em branco. Todas as minhas memórias estavam de volta.
Acordei com meu coração palpitando enlouquecidamente. Eu havia me lembrado de tudo. Estava tudo de volta. E eu sabia exatamente o que eu deveria fazer e não queria perder mais um segundo.
Fui até a sala com cuidado para não fazer nenhum barulho. O escuro me atrapalhou um pouco, mas consegui chegar até a sala sem despertar a atenção de ninguém. Procurei pelo rosto de Cosmo.
– Cosmo? – sussurrei – Cosmo? Acorde!
– O que? – Cosmo falou um pouco alto. Tapei a boca dele.
– Shhh! – coloquei o dedo indicador a frente da boca – Você irá me levar agora até Menelau. Eu preciso resgatar Alexis e não posso perder mais tempo. E não reclame, isso é uma ordem!