Sai da estrada e segui para a calçada. Não queria ter como presente de boas vindas um atropelamento.
– E agora? – disse para mim mesma – Não faço a menor idéia do que fazer.
– Disse alguma coisa? – um senhor apareceu atrás de mim.
– Não disse nada. – respondi – Desculpe, eu estou meio... Perdida.
– Entendo. – o senhor sorriu – Talvez devesse voltar para casa. Não é seguro para uma moça bonita ficar andando pela rua.
– Eu conheço esse lugar. – tentei parecer simpática.
– Então você não deveria estar perdida. – o senhor respondeu paciente.
– Não era disso que estava falando. – tentei não perder a cabeça – Quero dizer, eu estou perdida em meus pensamentos.
– Então ele te deixou pensar? – o senhor perguntou.
– O que disse? – rebati com outra pergunta.
– Não foi nada. – o senhor respondeu, agora com uma expressão apavorada.
– Quem me deixou pensar? – perguntei – Foi Bianor? Você é de Ofir?
– Não sei de nada. – o senhor começou a surtar – Não sei de nada.
– Não se apavore. – tentei acalmar-lo – Pode me contar.
– Não sei de nada. – o senhor continuava falando feito louco – Não sei de nada. Não me perturbe, não sei de nada. Não me perturbe. Eu já disse que não sei de nada.
– Sim, já disse. – a coisa estava ficando séria – Mas o senhor precisa se acalmar. Por favor, alguém ajude aqui?
– Ninguém! – o senhor gritou – Ninguém se aproxima de mim. Saia daqui! Vá para sua casa! Saia daqui! Saia agora!
– Senhor...
– Saia daqui agora! – os olhos do senhor mudaram – Você nunca escapará daqui.
– Essa voz? – estranhei.
– Saia daqui menina! – o senhor parecia cansado – Vá para sua casa. Lá você estará segura! Vá para casa!
– Mas o senhor? – estava preocupada.
– Vá para casa! – o senhor continuava gritando – Para casa!
Sai correndo apavorada. A expressão que estava estampada no rosto daquele senhor estava apavorante. O que estava acontecendo?
De uma forma ou de outra eu queria muito ir para casa. Sem dúvida aquela cidade estava muito estranha. Aos poucos fui reparando que ela estava mais estranha do que eu imaginava.
As ruas estavam idênticas a última vez que a vi, as casas continuavam as mesmas, as lojas ainda estavam nos mesmos lugares, mas as pessoas haviam mudado. Ninguém que eu conhecia parecia estar na cidade. As pessoas eram todas desconhecidas e agiam de forma naturalmente estranha. Eram quase robóticas.
Entrei em casa as pressas. Não era para ser assim, mas a cidade estava me assustando. Estava realmente me assustando. Não entendia absolutamente mais nada. O que Bianor fez?
– Mãe? – chamei – A senhora está em casa? Mãe?
A sala estava do mesmo jeito que sempre foi. A casa estava toda apagada e aparentemente vazia. Segui para a cozinha, também vazia.
– Mãe, a senhora está no quarto?
Continuei sem resposta e resolvi subir.
O quarto da minha mãe estava estranhamente limpo e vazio. A porta do banheiro estava entreaberta. Minha mãe não costumava deixar-la assim. Resolvi olhar. Vazio.
Meu quarto também estava vazio e do mesmo jeito que o havia deixado, porém sem os litros e litros de água que me levaram de volta para Ofir.
– Claro! – disse tão alto que minha voz ecoou pela casa – A caixa!
Procurei a caixinha que havia me levado para Ofir duas vezes. Revirei meu quarto inteiro. Parte por parte. Revirei como nunca havia revirado antes. Retirei os moveis do lugar, jogue tudo o que estava guardado nos armários no chão. Fiz uma verdadeira bagunça, mas nada da caixa aparecer.
– Que ótimo! – olhei as coisas espalhadas pelo chão – Eu que não vou arrumar essa bagunça.
Sem pensar duas vezes me joguei na cama. Deveria ter pensado.
Deitei em cima de algo duro. Parecia um livro. E realmente era. E não era qualquer livro, era o livro. Aquele mesmo que achei em Ofir e acabou vindo comigo para Terra. Na época eu não entendia nada o que estava escrito, mas agora que eu já havia recuperado a memória, provavelmente conseguiria ler-lo.
Abri o livro na esperança de que, por conta do destino, eu pudesse encontrar uma saída para voltar para Ofir. Mas acabei tendo uma surpresa.
– O livro está em branco? – minha voz ecoou novamente pela casa – Será que é realmente o mesmo?
Olhei para a janela e reparei que já havia anoitecido. Eu havia passado o resto da tarde procurando a caixa e nem percebi que a noite tinha chegado. E minha mãe continuava desaparecida.
Desci e fui olhar se por acaso ela não estava a caminho. A casa parecia estar completamente morta e não havia um único barulho em toda a cidade que não fosse os meus passos.
Fui até a varanda. A rua estava completamente deserta. Nenhum sinal de qualquer tipo de ser vivo que não fosse árvores e flores. As casas estavam todas com suas luzes apagadas e as luzes dos postes estavam tão fracas que só conseguiam iluminar uma pequena parte da rua.
Comecei a andar pela estrada deserta. Era extremamente assustador. O vento frio fazia barulho de assovios. Tudo o que estava acontecendo era muito estranho. Começava a desconfiar de que não estava realmente em casa. O que estava acontecendo aqui?
Todas as casas pareciam estar desabitadas. As lojas estavam todas fechadas. Isso não era normal. E as pessoas? Para onde foram as pessoas desta cidade? E essa escuridão?
Resolvi voltar para casa. Estar completamente sozinha e no sentido literal da palavra não era nada reconfortante. Era como se estivesse perdida em uma cidade fantasma.
Continuei olhando a rua pela janela, na esperança de que tudo não passasse de uma pegadinha e que todos estavam escondidos, apenas esperando o momento para voltarem as suas casa e rirem da minha cara de assustada.
Meus olhos aos poucos começaram a pesar. E continuaram pesando e pesando e pensando. Eles estavam realmente cansados. Eu estava realmente cansada. Tive que ceder.
Acordei quase junto com o sol. Sentia a luz entrar pela janela aberta e só neste momento reparei que havia dormido no chão, ao lado da porta. Levantei com o corpo completamente dolorido. Corri para o quarto da minha mãe na tola esperança de que a encontraria. Mas não encontrei. Voltei para a sala e comecei a ouvir barulhos vindo da rua. Olhei para a janela e tive uma grande surpresa.
– Mas o que significa isso? – disse para mim mesma.
A cidade havia acordado novamente. Pessoas andavam por todos os lados. As casas pareciam estar em festa de tanto entra e sai. As lojas, que na noite anterior pareciam abandonadas, estavam em um de seus melhores dias, repleta de clientes. Definitivamente algo estava muito errado. Definitivamente mesmo.
– Bom dia Beatriz! – um rapaz me cumprimentou.
– Bom dia Beatriz! – agora era uma senhora.
– Bom dia Beatriz! – uma criança.
– Beatriz, bom dia! – um garoto que deveria ser do contra.
Eu andava pela rua e simplesmente não entendia nada. Teria eu perdido novamente a memória? Todas essas pessoas falando comigo como se me conhecessem há anos e eu sem reconhecer um rosto sequer. O que estava havendo?
– Beatriz, você viu o carro novo que comprei? – um homem me parou em frente a sua casa. Ou pelo menos acredito que era.
– Fala Beatriz? – uma garota acenou para mim da bicicleta – Como vão os namorados?
– Namorados? – estranhei.
– Você está muito bonita hoje Beatriz! – nem sei quem falou.
– Será que alguém pode explicar o que está acontecendo? – gritei – Eu conheço vocês?
– Claro que conhece! – alguém falou em algum lugar.
– Você conhece todas as pessoas que estão aqui. – o homem do carro novo falou.
– Não eu não conheço! – estava assustada.
– Você sempre conheceu Beatriz! – o homem ficou sério.
– Eu estou falando que não conheço nenhum de vocês. – comecei a gritar mais alto.
– Você está pensando Beatriz? – o homem falou com certo estranhamento – Você não deveria pensar Beatriz, não nos é permitido pensar.
– Do que vocês estão falando? – estava apavorada – Todos vocês!
– Não pense Beatriz! – um rapaz loiro apareceu – Pensar pode te matar.
– Você viu o que aconteceu com meu marido. – a senhora apareceu por trás de mim – Ele pensou demais e explodiu. Boom.
– Mas o que é isso? – eles começaram a me cerca – O que vocês querem?
– Pare de pensar Beatriz! – o homem do carro novo – Você nunca sairá daqui.
– Junte-se a nós. – a garota da bicicleta estava de volta – Você será mais feliz se juntando a nós.
– Eu não quero me juntar a ninguém – continuei gritando – Eu quero sair daqui.
– Você nunca voltará para Ofir. – uma voz falou.
– Vocês sabem de Ofir? – perguntei – Isso é obra de Bianor? Digam!
– Não sabemos de nada. – todos começaram a falar em coro – Não sabemos de nada.
– Está acontecendo o mesmo que aconteceu com aquele velinho. – fiquei mais apavorada.
– Não sabemos de nada. – eles continuavam me cercando – Não sabemos de nada.
Eu precisava sair dali. E não tinha outro jeito. Respirei fundo e sai em disparada empurrando tudo e todos que estivessem no meu caminho. Eles não tentaram me impedir, mas vieram atrás de mim.
Corri o mais rápido que pude e levantei as mãos para o céu quando cheguei em casa. Tranquei todas as portas e fechei as janelas em uma velocidade anormal. Não era como se eu fosse o Flash, mas foi mais rápido do que um humano comum seria. Mas eu não era uma humana comum.
Olhei pela janela e eles estavam parados, apenas observando a minha casa. Era como se não conseguisse ou não pudessem passar pelo portão. Eles apenas olharam e aos poucos foram indo embora.
– Agora eu tenho certeza. – disse pra mim mesma – Não estou na Terra coisa nenhuma.
Fechei as cortinas das janelas. Não queria dar de cara com um deles. Mas precisava estar atenta caso eles resolvessem passar pelo portão. A sensação que tinha era de que estava em um daqueles filmes de zumbi baixa renda que eu costumava assistir quando tinha 12 anos.
– O que está havendo? – subi para meu quarto – O que Bianor está tramando?
Assim que abri a porta dei de cara com o livro em cima da minha cama. Instintivamente eu o peguei e abri. Passei folha por folha. Todas em branco. Não conseguia entender o motivo daquele caderno está ali, agora que já estava convencida de que Bianor estava tramando algo e que eu não estava na Terra. Até chegar na última página.
Uma mancha negra surgiu e começou a tomar forma de letras. Estava escrevendo uma mensagem. Fui lendo em voz alta.
– Viu... Como... Eu... Não... Sou... Assim... Tão... Cruel...? – a mancha parou de formar letras – O que você quer dizer com isso Bianor? Responda!
Estava tão nervosa que atirei o livro pela janela. Isso acabou quebrando o vidro.
– Mas que droga! – gritei – Agora a mamãe... O que eu estou falando? Eu não estou na Terra. Dane-se essa janela!
Observei o movimento. Não havia mais nenhuma pessoa em volta da minha casa, mas elas continuavam nas ruas. Andando e agindo como se nada tivesse acontecido. Parecia ser mais um dia comum. Virei e fitei a cama.
– Mas o que é isso? – fiquei assustada.
O livro estava de volta. Exatamente no mesmo lugar que ele estava quando cheguei. Em cima da cama.
Novamente o instinto falou mais alto e acabei abrindo-o novamente, desta vez indo direto para a última página. A mensagem não estava mais lá.
– Eu já entendi tudo. – falei olhando ao meu redor – Não precisa mais fingir. Você está querendo me enlouquecer. Eu sei que está. Apareça seu covarde. Venha me enfrentar feito homem!
Obviamente eu não tive nenhuma resposta. Bianor não iria aparecer nunca. Eu teria que descobrir uma forma de sair daquele lugar o mais rápido possível. Mas o que ele quis dizer com “eu não sou assim tão cruel?” E o que aquelas pessoas queriam dizer com “você não pode pensar?” Era muita coisa para uma única cabeça resolver.
Segui para o banheiro. Precisava lavar meu rosto e ver se conseguiria pensar em algo rápido. Mas Bianor definitivamente queria me enlouquecer.
– Olhe para mim. – era a minha voz – Não tenha medo de olhar para mim.
– Eu sei o que você quer. – continuei fitando a pia sem olhar para o espelho.
– Você não irá morrer se olhar para mim. Eu não sou a Medusa. – ela continuava me provocando.
– Eu não irei olhar. – disse decidida.
– Não seja uma menina má. – era estranho ouvir minha voz naquele tom maléfico – Eu sou você.
– Não! – gritei – Você é uma invenção de Bianor.
Ela deu uma gargalhada assombrosa. Uma sensação estranha me tomou e não consegui mais evitar. Tive que olhar para o espelho. Era exatamente como imaginava. Ela estava lá, rindo diabolicamente.
– Eu sou Mallory! – dissemos juntas.