– Você não mudou nada! – Tales sorriu – Parece a mesma Beatriz de 1 ano atrás.
– Obrigada. Eu acho – respondi.
– Eu ainda não tinha visto o que havia acontecido aqui. – Cosmo olhava em volta.
– Triste. – Tales fitava o chão – Eu estava aqui no dia da primeira invasão. Quer dizer, a primeira que deixou Leander neste estado.
– Como assim? – perguntei.
– Houveram varias invasões, mas nenhuma que destruísse o reino inteiro. – Tales respondeu.
– Sim, quanto a isso eu entendi. – olhava intrigada para Tales – Mas como assim a primeira vez que deixou Leander neste estado? Houve outras invasões depois que destruíram tudo?
– Muitas outras! – Tales respondia com tristeza – A primeira vez, um exercito de homens e Leons atacaram o reino e fizeram isso como um alerta para os outros reinos que se opusessem aos planos de Bianor. Mas os sobreviventes, que na época havia sido um número considerável, não deixaram se abater tão fácil e começaram a reconstruir o reino, mas antes que eles pudessem terminar qualquer coisa, Bianor mandava destruir. Foi assim durante quase o ano inteiro.
– Mas as pessoas ainda estão reconstruindo o reino? – perguntei assustada.
– Agora eles desistiram. – Tales continuava triste – Foi um ano muito longo e muito doloroso. As pessoas cansaram de tentar reconstruir um reino que pouco tempo depois seria reconstruído. Se não tivessem insistido tanto, o reino estaria em... Um estado melhor, digamos assim.
– E onde estão os sobreviventes? – Nicardo parecia mais triste do que antes.
– Os poucos que sobreviveram ficam escondidos. – Tales olhava para o corredor de casas que passamos – Fizemos um local especial para abrigar todos eles.
– Mas como estão fazendo para se alimentar? – perguntei preocupada.
– Recebemos, clandestinamente, varias doações. – Tales respondeu – Bianor sabe que isso acontece, mas faz vista grossa. Se nós não o incomodarmos, claro.
– Então os leandineses estão preferindo viver uma vida miserável a lutar pelo que é deles de direito? – Nicardo agora parecia indignado.
– Como disse, chegou uma hora que todos cansaram. – Tales voltou a fitar o chão – Houve muitas batalhas. Todas com muitas mortes. Estávamos todos muito cansados de ver aqueles que amamos indo embora. Estávamos cansados de começar a trabalhar duro em algo e depois ver isso ser completamente destruído. Estávamos todos cansados. Muito, muito cansados.
– Desde que vocês se foram isso aqui vem se tornando uma tortura! – Thalassa olhava para Nicardo com pena. – Eu entendo a decisão dos leandineses. Realmente, estamos todos cansados.
– Mas agora eles voltaram! – Cosmo gritou em uma súbita tentativa de animar a todos – Beatriz, a lenda, ela está aqui. Tudo vai voltar a ser como antes.
Todos olharam para mim e – aparentemente – se sentiram mais esperançosos. Eu não contaria muito com isso, não sei se daria conta de toda essa responsabilidade. Tentei não transparecer o que estava pensando. Acho que havia conseguido.
– Você está vivendo aqui? – perguntei tentando quebrar o silêncio.
– Na verdade, estou me escondendo. – ele acenou com a cabeça para que o seguisse.
– Escondendo? – Nicardo estranhou.
– Muitas pessoas fazem isso. – Tales seguia em frente – Eles fogem dos outros reinos e vem se refugiar aqui. Não sei se Bianor também faz vista grossa quanto a isso, mas acredito que não. Muitas pessoas juradas de morte estão aqui, como eu.
– Você está jurado de morte? – fiquei assustada.
– Sim, todos nós! – ele deixou uma mensagem reconfortante.
– Eu também? – Cosmo perguntou.
– Já descobriram que você está acobertando a Thalassa? – Tales olhou para trás.
– Acho que não. – Cosmo respondeu confuso.
– Então está tudo certo. – Tales sorriu – Por enquanto você está a salvo.
– Isso não é algo do qual eu me orgulho, mas agora somos criminosos procurados. – Thalassa estava bem atrás de Tales – Acho que se Bianor soubesse que estamos aqui já teria aparecido. Ou mandado Leons nos buscar.
– Concordo. – Tales continuava seguindo em frente.
A paisagem continuava a mesma. Total destruição, deserto e sol quente para tudo o que é lado. O tempo que passamos descansando não foi o suficiente para disfarçar o quanto estávamos com sede. Não demorou muito para estarmos com as bocas secas novamente.
Thalassa era a que mais sofria. Ela parecia exausta e já nem mais tentava disfarçar. Cosmo também não parecia muito legal. Estava amarelo de suor. Eu deveria estar bem parecida com ele. Talvez pior. Os únicos que estavam bem eram Nicardo e Tales.
– Vamos demorar a chegar onde quer que você queira que cheguemos? – Cosmo perguntava quase tombando.
– Não, não! – Tales respondeu – Aliás, já chegamos.
Estávamos em frente a um grande galpão. Não estava tão ruim quanto o restante das construções que vimos, mas ainda era parte da paisagem de destruição.
O galpão era rodeado por cercas de arames farpados, o que – vendo a luta que Nicardo e Thalassa tiveram em Neide – deveria ser apenas um enfeite e não um tipo de proteção. O galpão era de um marrom desbotado e era tapado por telhas de aço, o que dava um contraste um tanto estranho para o local. O sol refletia no telhado metálico e parecia ser enviado de volta para a atmosfera. Tales abriu uma longa porta de madeira. Entramos no galpão.
Dentro do galpão havia varias pessoas e criaturas estranhas. Havia pessoas com orelhas e rabos vermelhos, fazendo lembrar um gato. Outras tinham a mesma aparência aquática de Thalassa. Uma grande parte das pessoas ali presente tinha a aparência rochosa de Nicardo, o que presumi que deviam ser os leandineses sobreviventes.
– Aqui é onde os sobreviventes se abrigam. – Tales mostrava como se fosse um grande reino maravilhoso. – Construímos isso faz dois meses.
– Mas e aquele corredor de casas? – perguntei, mas fui ignorada.
– Temos água bem aqui! – Tales abriu uma grande caixa branca, com vários jarros d’água dentro. – Não posso dizer para pegarem o quanto quiserem, mas podem beber o suficiente. Água é muito difícil de se encontrar.
O grande galpão servia como uma hospedaria improvisada. Havia algumas paredes visivelmente feitas apenas para dividir o espaço de cada família ou grupo que estava ali. Havia cortinas tapando as entradas e pessoas andando por toda a parte.
Apesar de muitas pessoas, o local não parecia apertado. Ele era grande o suficiente para todos que estavam ali. Mas de qualquer forma era triste imaginar que todas aquelas pessoas perderam as suas casas e que, se tentassem reconstruir-las, servos de Bianor acabariam destruindo tudo outra vez.
– Tales, que bom que você voltou! – uma moça de cabelos loiros corria e abraçava Tales. – A Gaia estava muito preocupada.
– Gaia? – Nicardo perguntou.
– É uma moça, vinda de outro planeta, que salvei. – Tales respondeu seguindo para um dos quartos à direita.
– Outro planeta? – Nicardo perguntou.
– Desde que vocês saíram, Bianor vem abrindo vários portais. – Tales começou a explicar.
– Sim, isso já sabemos! – Nicardo o interrompeu.
– Pois bem, ela acabou caindo em um desses portais e acabou sendo atacada por Leons. – Tales parecia estar lembrando-se da cena – Ela estava muito assustada, provavelmente não conseguiu se defender por estar confusa demais. Vendo a situação, imaginei na mesma hora que ela deveria ser outra que caiu em um dos portais e fui ajudar-la.
Tales deu três batidas na parede e a cortina se abriu. Quem estava atrás dela era uma moça alta, com os cabelos em tranças rastafári negros. Havia três bolinhas pretas envolta de cada olho cinza. Seus lábios eram grandes, mas delicados e ela usava vários acessórios que pareciam de origem indígena. Sua pele era branca, mas estava pintada com listras pretas pelos braços e pernas. As suas bochechas também tinham pequenas listras pretas, que começavam no queixo e terminavam perto da boca. Ela usava um vestido azul que parecia com vestido da época dos homens das cavernas e era amarrado na cintura por uma corda marrom claro. Andava descalço e tinha um arco e flecha amarrado nas costas.
– Pessoas, essa é a Gaia! – Tales sorriu – Gaia estes são Nicardo, Beatriz, Thalassa e Cosmo, meus amigos!
– Muito prazer! – estendi a mão, mas fiquei no vácuo.
Gaia olhou para cada um de nós de cima a baixo. Ela se aproximou de nós quase rastejando e se esquivando, mexeu em nossas roupas e nos cheiro e depois voltou para onde ela estava. Que garota esquisita.
– Não se preocupem, Gaia é assim mesmo. – Tales sorriu constrangido – Ela desconfia de todo mundo. Não espere muita conversa dela, ela só vai falar com você depois que achar que pode confiar em vocês.
– Mas ela fala Ofirniano também? – Nicardo perguntou.
– Não, eu ensinei a ela. – Tales respondeu – Ela ainda não sabe falar tudo, mas aprendeu muita coisa.
Saímos de perto do quarto e pude notar Gaia nos observando por detrás da cortina. Ela era realmente uma pessoa muito estranha. Ou não. Pus-me no lugar dela. Chegar a um mundo onde você não conhece absolutamente nada e nem ninguém e o primeiro contato que tem e de monstros tentando te matar. Até que era compreensível o medo dela de se aproximar de quem ainda não confia.
– Então você veio para Leander para ajudar-los? – perguntei.
– Na verdade, como disse, eu já estava aqui no dia da primeira invasão. – Tales respondeu indo para outro quarto. – Entrem! – ele sorriu – É aqui que eu fico!
– Mas Tales, o que te fez vir para Leander? – estava curiosa – Não era mais seguro onde você estava?
– Na verdade era. Na época era. – Tales abriu uma gaveta e pegou uns papéis – Lembra dessa letra?
Peguei os papéis, cheios de símbolos estranhos que pareciam os que eu escrevia de vez em quando e o devolvi.
– Não! – respondi – Acho que não me lembro.
– Era a letra do Alexis. – esse nome outra vez – Essas eram as anotações que o Alexis fez antes de... Bem, antes de desaparecer.
– O Alexis está desaparecido? – Thalassa perguntou.
– A última vez que soube do Alexis foi no dia em que perdemos contato. – Tales colocou os papéis encima da mesa – Quando você voltou para Neide, Alexis havia desaparecido. A única coisa que sobrou dele foi essas anotações, guardadas em uma gaveta no quarto onde ele se escondia com o Neandro e a Linfa.
– Me deixe ver o que está escrito? – Thalassa pegou as anotações e se sentou em uma cadeira que estava ao lado da mesa.
Thalassa começou a analisar as anotações e parecia não muito surpresa com o que estava escrito ali.
– Realmente já era de se esperar! – Thalassa colocou as anotações de volta na mesa – Ele estava à procura da mãe.
– A Rainha? – perguntei um pouco alto demais.
– Sim, a rainha Alina! – Tales voltou a pegar as anotações. – Ele tinha varias pistas sobre o paradeiro da Rainha e, com certeza, está rondando Ofir atrás dela. Eu vim para Leander em busca dele. Neandro estava passando por muitas dificuldades na Capital e precisava da ajuda do irmão para organizar as tropas e ter se juntar aos homens fortes do reino.
– Mas é agora? – Nicardo perguntou – Como estão as pessoas na Capital?
– Acredito que o reino ainda não foi invadido. Essas notícias sempre chegam rápido. – Tales guardava os papéis – Mas acredito que estejam passando por muitas dificuldades. Provavelmente maiores do que da última vez em que estive por lá.
– Então eles devem estar precisando de nós! – Nicardo disse preocupado.
– Estava esperando o retorno de vocês dois para poder fazer isso. – Tales sorriu – Mas alguém precisa procurar pelo Alexis. Isso é... Se ele não já tiver morrido.
– Não! – gritei instintivamente – Ele não morreu!
– Beatriz? – Nicardo me olhou estranho.
– Eu não lembro exatamente quem é Alexis, mas eu sei que ele está vivo! – tentei me acalmar da súbita crise de pânico – E eu preciso encontrar-lo.
– O que? – agora Nicardo parecia nervoso. – Desculpe, eu não entendi.
– Eu sinto que ele é a chave para que eu recobre a minha memória. – respondi. – Eu preciso encontrar-lo!
– Não! – Nicardo gritou – Eu não vou deixar você ir atrás dele!
– Nicardo... – segurei em seus ombros – Acho que já está na hora de você deixar eu me lembrar dele. Quando estávamos na Terra você sempre dava um jeito de me fazer não pensar nesta pessoa que esqueci, mas agora é inútil. Eu não posso ajudar-los se não lembrar. E eu não posso me lembrar se não achar-lo. O Alexis terá que voltar a fazer parte da minha vida, para o bem de todos.
– Não Beatriz! – Nicardo continuava nervoso – Isso eu não aceito!
– Mas Nicardo... – Thalassa tentou falar alguma coisa.
– Não! – ele fechou as mãos em punho – Eu não deixarei a Beatriz lembrar dele. Você pode sim ajudar Ofir sem ter que se lembrar do Alexis.
– Nicardo, pare com isso! – gritei. – Não seja tão egoísta!
– Eu não sou eu quem está sendo egoísta! – ele rebateu. – Deixe de ser infantil seu príncipe metido e arrogante!
– O que você disse? – Nicardo parecia assustado.
– Metido e arrogante! – repeti.
– Não, não. – ele baixou os ombros – Antes disso. Você me chamou de príncipe?
– Eu te chamei de príncipe? – me assustei.
– Nunca mais fale isso outra vez! – Nicardo estava serio – Você não vai se lembrar dele!
Nicardo saiu furioso de dentro do quarto de Tales. Um clima estranho e desconfortável ficou pairando no ar, junto com um silêncio igualmente estranho e desconfortável que foi quebrado por mim.
– Eu realmente disse algo que não devia?
– Acho que sim! – Tales colocou a mão no meu ombro – E digo mais, acho que de agora em diante você só irá falar coisas que não deve.
Corri atrás de Nicardo. Seja lá o que tenha magoado, eu queria reparar o quanto antes possível. Nicardo era a única pessoa com quem eu me sentia realmente à vontade naquele lugar e não queria perder-lo.
Ele estava do lado de fora do galpão, sentado em uma das varias ruínas que estavam a nossa volta. Cheguei devagar e o abracei pelas costas. Ele se esquivou e eu quase cai no chão. Teria sido uma queda feia.
– Nicardo, não faz assim! – fui atrás dele – Vamos conversar.
– Agora não! – ele estava serio.
– Seja lá o que eu tenha dito, vamos esquecer. – tentei abraçar-lo novamente, mas novamente ele se esquivou e novamente eu quase cai.
– Agora não! – ele continuava serio.
– Vamos tentar nos entender, voltar como éramos antes.
– Esse é exatamente o problema! – ele se virou para mim – Nós nunca iremos voltar a ser como éramos antes. O que você disse é a mais pura verdade, agora que você está aqui é inútil tentar não te deixar lembrar dele.
– Mas por que eu não posso me lembrar do Alexis? – perguntei.
– Por que quando você se lembrar dele, eu irei te perder para sempre. – ele segurou em minhas mãos – Eu não quero te perder. Eu não posso te perder.
– Calma! Você não vai me perder. – tentei animar-lo.
– Vou sim! – ele tentou esconder, mas estava chorando.
– Como sabe? – passei a mão na cabeça dele.
– Por que é ao Alexis que o seu coração pertence! – ele olhou diretamente para mim – É o Alexis que você ama de verdade!
– Não! – o afastei de mim instintivamente – Eu não o amo. Eu amo você!
– Não Beatriz. – ele continuava chorando – Você ama o Alexis.
– Então por que não sinto nada por ele. – sorri – Por que o que eu conheço de amor é exatamente o que eu estou sentindo por você?
– Agora você diz isso. – ele apertou minha mão – Mas é depois que você se lembrar? Para onde irá todo esse amor?
– Ele continuará aqui! – encostei a mão dele em meu coração – Meu amor por você não vai a lugar nenhum!
– Você promete? – ele se ajoelhou – Prometa que mesmo que você se lembre, você irá continuar comigo. Que esse amor que você sente por mim agora continuará sendo o mesmo depois que você lembrar dele.
– Claro que continuará! – o abracei – Eu prometo que ele continuará! Agora se levante e vamos voltar para dentro do galpão. O pessoal está preocupado.
Nicardo se levantou e voltamos de mãos dadas. Estava me sentindo horrível. Algo dentro de mim dizia que eu não conseguiria cumprir a promessa que havia feito para Nicardo e ele parecia pensar o mesmo. Mas por quê? Será que eu realmente amei esse Alexis? Se o meu amor por ele é maior do que o meu amor pelo Nicardo, por que eu esqueci? Isso não fazia sentido.
Continuei tentando parecer que estava confiante na promessa que fiz. Mesmo que Nicardo também soubesse que eu não conseguiria cumprir a promessa, não queria ver-lo novamente como eu o vi. Era triste demais ver-lo daquele jeito.
Tales, Thalassa e Cosmo estavam a nossa espera, na porta do galpão. Esperava que eles não tivessem assistido a cena e que, se tivessem assistido, que pelo menos fingissem que não haviam visto nada.
– Como será? – Tales perguntou.
– Como será o que? – Nicardo rebateu.
– Vocês irão ficar aqui essa noite ou querem seguir para Capital ainda hoje? O coleguinha de vocês disse que tem um submarino muito potente, gostaria de viajar nele.
– Acho mais prudente nós ficarmos essa noite e descansarmos! – Thalassa fitou a todos conferindo se alguém iria se opor.
– Sair agora realmente não seria uma boa idéia. – Nicardo ainda segurava minha mão – Estamos todos muito esgotados de tanto andar no sol sem destino.
– Então vamos entrar logo! – Tales olhou ao redor – Daqui a pouco irá escurecer e não é muito bom ficar andando por ai à noite.
– Por quê? – perguntei.
– Vamos entrar? – novamente fui ignorada.
Tales ficou alguns segundos fitando o grande corredor de casas e eu tive certeza absoluta, ali tinha alguma coisa. E pela aflição de Tales, não deveria ser uma coisa muito boa.