A Rainha Alina estava viva, eu podia sentir. Reparei que ela não estava jogada como quando vi pelo espelho. Ela parecia ter sido posta de uma forma mais confortável. Provavelmente Neandro a deixou daquele jeito antes de correr em direção ao corpo do pai.
Bianor estava fazendo um trabalho manual. Depois de jogar coisas e pessoas ao vento apenas com o estalar de dedos achei que tivesse se esquecido. Ele pegava o trono que havia sido jogado para o outro lado da sala e colocava em seu lugar. Provavelmente ele queria sentir o prazer de fazer isso com as próprias mãos.
Depois de colocar o trono no lugar, Bianor seguiu em direção ao corpo do Rei Céleo. Neandro tentou parar-lo, mas foi em vão. Bianor esticou a mão e segurou Neandro pela cabeça, fazendo ficar paralisado. As expressões de desespero de Neandro me fizeram chorar.
Bianor se agachou, provavelmente para evitar ficar curvado, e pegou a coroa do Rei Céleo que estava jogada ao lado do corpo dele.
– Finalmente minha! – Bianor falou baixo.
– O que você pensa que está fazendo? – gritei – Tire essas suas mãos imundas da coroa do Rei Céleo.
– Você não tem ideia de quanto isso é bom. Muito bom. – Bianor zombava.
– Cale essa boca seu maldito! – me sentia personagem de desenho japonês – Eu estou aqui! E a mim que você quer! Sou eu quem você procura! Deixe os outros fora dessa! Você está me ouvindo?
Bianor continuou a me ignorar. Não teve como não me irritar com essa atitude. Ele estava zombando demais. Já estava sendo muito doloroso ver o corpo do Rei Céleo estirado no chão e saber que poderia ter evitado e ele ainda zomba me ignorando. Não contive o impulso e estapeei seu rosto.
– Mas o que é isso? – ele perguntou assustado – Quem fez isso?
– O que foi Bianor? – estava furiosa – Além de burro virou cego também?
– Eu estou avisando – Bianor se afastou de mim – apareça!
– Eu estou bem na sua frente! – continuei gritando.
– Eu sei que é você – Bianor rodava a sala – Não adianta se esconder. Quero apenas que tenha a coragem de se mostrar.
– Pare de bancar a criança Bianor! – eu estava ficando realmente irritada – Você está me vendo.
– Eu vou contar até três – Bianor parecia estar pisando em ovos. Mas no sentido literal da frase – espero não ter que desmascarar você. Um, dois, três!
Bianor fez um gesto estranho com a mão – parecia alguém espantando mosca – e ficou muito assustado. Não sei o que exatamente ele esperava que acontecesse, mas fosse o que fosse parece não ter dado certo.
Bianor tentou novamente fazer o que quer que estivesse tentando fazer. Novamente a cara de espanto dele apareceu. Mas desta vez veio acompanhada de expressões de confusão e medo. Muito medo. Isso vindo de Bianor era novidade.
– O que está acontecendo? – Bianor perguntou.
– Eu que pergunto. – disse já esperando ser ignorada.
– Quem é você? – Bianor tentava disfarçar o medo – O que você quer?
– Você sabe muito bem quem sou e o que quero. – respondi.
– Eu exijo que você apareça. – ele quase gritou.
– Mas eu estou bem na sua frente. – me aproximei dele.
– Não me faça de bobo! – Bianor gritou – Eu sei que você é.
– Se sabe para que pergunta? – zombei da cara dele, mas fui ignorada. Neste caso isso é péssimo.
– Eu disse que juntas faríamos a diferença. – era a minha voz, mas não era um pensamento meu.
– Mallory? – perguntei.
– Não. – ela respondeu – Agora eu sou você também.
– O que está fazendo? – ainda não havia me acostumado.
– Em primeiro lugar eu aconselharia a você a falar comigo apenas por pensamento. – Mallory falou – Fale como se estivesse falando para si própria. O que não deixará de ser verdade.
– Tudo bem. – pensei.
– Ótimo. – se pensamentos sorriem eu a senti sorrir em minha cabeça – Bianor não está se fazendo de bobo. Ele apenas não contava que eu tivesse algum raciocínio lógico e que não soubesse juntar as duas partes de mim.
– Mas o Bianor sabe o que fiz? – perguntei em pensamento.
– É claro que não. – Mallory falou – Ele só irá descobrir o que eu fiz quando for me procurar.
– E ele vai sacar tudo quando vir que eu também não estou lá! – pensei o obvio.
– Eu também? – Mallory estranhou – Acho que estou ficando louca.
– Como assim você está ficando louca? – perguntei.
– Eu me referindo a mim mesma como se existisse outra pessoa além de mim. – Mallory estava levando a sério essa história de ser um só.
– Você está me deixando confusa Mallory. – pensei.
– Não importa. – Mallory falou – Agora sou o ser mais poderoso de Ofir. Juntar minhas duas partes foi realmente necessário. Ninguém mais pode me ver, a menos que eu queira ser vista.
– Mas eu quero ser vista! – desta vez disse em voz alta.
– Não. – Mallory falou – Eu não quero ser vista. Seria péssimo ser vista em um momento como esse. Preciso aprender a conhecer os momentos certos para fazer certas coisas.
– Mallory! – estava ficando irritada.
– O que foi? – ela perguntou.
– Te peguei! – disse em pensamento.
– Vamos Beatriz, leve isso a sério. – Mallory parecia chateada.
– Você que não está levando isso a sério. – falei.
– Claro. – ela parecia chateada – Acho que você não sabia que para controlarmos todo o nosso poder nós não temos apenas que nos juntar. Temos que nos tornar uma só de corpo r alma.
– Você não disse isso quando estávamos na dimensão paralela do Bianor. – lembrei.
– Não era o momento. – Mallory brigou – Tínhamos algo mais importante para resolver.
– E chegamos tarde demais. – disse olhando para o corpo do Rei Céleo – Mas o que está acontecendo?
A minha conversa com Mallory acabou me fazendo perder o foco em Bianor. Ele agora estava chamando seu cavalo de sombra. Não sei o que ele pensou que fosse, mas estava claramente fugindo da sala do trono. Mas seus olhos pareciam dizer que ele voltaria para destruir quem quer que fosse. Mas eu já não tinha mais tanto medo.
Ele montou em seu cavalo e saia pela janela de uma forma assustadoramente rápida. Era como se tivessem acelerado um filme que já fosse rápido. Mas eu não estava com tempo para pensar em qualquer outra coisa. Já havia perdido tempo demais.
– Nós podemos fazer algo pelo Rei Céleo? – perguntei.
– Infelizmente não. – Mallory respondeu – A linha que separa o mundo dos vivos com o dos mortos não pode ser alcançada por nenhum mortal e nem por nenhuma magia. Apenas os seres místicos que criaram esse mundo tem acesso aos dois mundos.
– E por ele? – perguntei apontando para Neandro que continuava paralisado.
– Por ele ainda podemos fazer algo. – Mallory respondeu – Deixe comigo.
Mallory começou a fazer meu corpo se mexer. A sensação foi... curiosa. Não era como se alguém estivesse me controlando. Sentia como se meu corpo estivesse me obedecendo. Era uma sensação muito difícil de explicar. Apenas tendo duas partes suas controlando o seu corpo para entender o que estou tentando dizer.
Encostei minha mão no rosto de Neandro. Senti meu peito cheio de ar e depois senti todo esse ar se dissipar imediatamente. Neandro voltou aos poucos a se mexer.
– Você está bem? – perguntei – Está me vendo?
– Sim. – Neandro respondeu. Fiquei aliviada – Eu estou bem e estou te vendo. Meu pai?
– Ele está ali. – disse em um tom mais baixo que o normal.
– Então aconteceu mesmo. – os olhos de Neandro se encheram de lagrimas.
– Você não sabe o quanto eu gostaria de dizer que isso não passou de um pesadelo horrível. – tentei consolar-lo.
– Aquele maldito! – Neandro gritou – E minha mãe?
– A Rainha Alina está ali. – tentei não apontar. Parecia muito grosseiro e indelicado ficar apontando.
– O que está acontecendo com Ofir? – Neandro perguntou – E onde está Alexis?
– Alexis, Nicardo e Amadeus não estão disponíveis por enquanto. – tentei não parece estar fazendo uma piada – É uma longa história, depois te conto. Agora nós temos coisas mais importantes para fazer.
– Tem razão. – Neandro olhou para o corpo do pai – Você me ajuda em uma coisa?
– Se estiver ao meu alcance. – segurei sua mão.
– Eu quero levar meu pai para um lugar.
Ele pediu para que eu ajudasse a carregar a mãe dele enquanto ele levava o corpo do pai.
Neandro abriu uma passagem secreta, na sala do trono, que eu desconhecia. Ele havia dito que aquela sala tinha varias passagens espelhadas, todas levando para o mesmo lugar. Um lugar que apenas ele, o Rei Céleo, Alina e Alexis conheciam. Um lugar que realmente pertencia apenas a eles e a mais ninguém. Não pude deixar de me sentir honrada em ser levada para um lugar tão intimo e pessoal da família.
O lugar em questão era um belíssimo jardim subterrâneo. Neandro contou que aquele lugar sobrevivia por causa da magia que o Rei Céleo havia deixado naquele lugar.
O jardim parecia um pedaço do paraíso. Havia árvores e flores com cores tão vivas que pareciam saltitar. Existia um belo rio que cortava o jardim. Até mesmo as pedras davam um brilho diferente. Havia ainda uma árvore enorme, com dois balanços e uma toalha do tipo que se usa para piqueniques.
– Meu pai criou esse lugar como presente de casamento para minha mãe. – Neandro contou – Ele dizia que a beleza daquele lugar simbolizava tudo o que ele sentia pela minha mãe.
– Mas esse é simplesmente o lugar mais belo que já vi. – fui sincera.
– Não duvido nada de que a magia que meu pai usou para criar esse jardim foi a magia do amor.
– E tenha a certeza de que foi. – disse colocando a mão em seu ombro.
– Eu quero que meu pai fique aqui. – Neandro falou – Eu sei que, como fui deserdado, o Alexis se tornou o primogênito e ele deveria escolher o local onde o nosso pai vai descansar.
– Eu não acredito que o Alexis escolheria outro lugar. – novamente fui sincera – E acredito que ele cederia esse momento para você. Você pode ter sido “exonerado” do cargo de primogênito por leis estúpidas, mas eu duvido que tenha sido expulso do coração de seu pai. Você continua sendo e sempre será filho dele.
– Obrigado pelas palavras. – Neandro fechou os olhos – Alexis deveria estar aqui.
– Não podemos fazer nada? – perguntei a Mallory.
– O que disse? – Neandro estranhou.
– Eu falei que você iria parecer louca. – Mallory falou em minha cabeça.
– Nada. – respondi e concentrei nos meus pensamentos – Não podemos trazer Alexis para cá?
– Acho que isso é mais difícil. – Mallory respondeu – Nós podemos nos transportar para qualquer lugar sem problemas, agora transportar outras pessoas já é um caso mais difícil.
– Mas eu não sou a criatura mais poderosa de Ofir? – perguntei.
– Sim, mas sabe usar toda essa magia corretamente? – Mallory rebateu. Fiquei sem palavras – Eu já falei o que precisamos fazer.
Um rápido momento de silêncio tomou conta do local. Neandro fez aparecer alguns galhos. Vários galhos e pedras começaram a flutuar e se juntar uns nos outros até formar uma grande coroa.
– Meu pai não queria um grande enterro. – Neandro falou – Ele queria apenas que guardassem as boas lembranças dele. E esse será a minha forma de mostrar o meu respeito por ele.
– Que belo gesto. – disse admirando a coroa.
– Para mim o meu pai será sempre o único rei de Ofir. – Neandro falou – E esse será o símbolo do meu eterno respeito a ele. Meu pai.
Neandro colocou o pai sentado perto da grande árvore e da coroa. Coloquei a Rainha Alina – que estava deitada ao meu lado – junto com o rei. Um vento começou a sopra de repente. Já não me assustava mais com a falta de lógica em Ofir. Mas esse não parecia ser um vento qualquer. E não era.
O vento estava transformando o Rei Céleo em minúsculas partículas douradas. Elas se espalharam pelo jardim e o transformaram em algo ainda mais belo, com vários pequeninos pontos brilhantes no chão.
– Agora meu pai viverá eternamente aqui. – Neandro parecia satisfeito.
Não era exatamente um túmulo, mas eu sabia que mais uma parte do meu sonho havia se cumprido. E eu já sabia o que aconteceria depois.