Tentei desesperadamente sair daquele lugar. Era muita crueldade me fazer assistir aquilo sabendo que eu estava de mãos atadas. Mas mesmo sabendo que já havia feito de tudo, continuei tentando achar uma forma de voltar para Ofir.
Tentei novamente magia, tentei encontrar passagens e tive que resistir ao impulso de pular para cima do espelho. Nada funcionava. Eu estava condenada a ver a Capital sendo destruída e não poder fazer nada para ajudar.
Neandro, Tales e Cosmo estavam fazendo a defesa, enquanto Linfa e Thalassa faziam a retaguarda. Vários soldados estavam espalhados em pontos estratégicos, atacando cada avanço que Bianor e seu exército davam.
Bianor brincava no céu com seu cavalo alado feito de sombras. Mas ele não parecia estar se divertindo. Seu rosto estava sério e pensativo. Parecia estar pensando em algo muito distante. Era como se nem estivesse concentrado na batalha. Por alguns instantes me fez pensar que sua presença ali não era meramente ilustrativa. Até que ele reagiu.
– Rápido! – Bianor gritou – Quero os portões abaixo! Destruam tudo!
A defesa dos homens de Ofir estava excelente. Eles não conseguiram impedir que os portões fossem quebrados, mas estavam conseguindo atrasar os passos do exército de Bianor e ainda fazer com que recuassem. Mas isso não durou por muito tempo.
– Detesto ter que fazer isso – Bianor estava desapontado – Perde totalmente a graça de uma boa luta.
Bianor fez um gesto com a mão e mais da metade dos homens da Capital voaram para longe, feito folhas jogadas ao vento. E eu continuava desesperada.
Os soldados da Capital não se deixaram abater e logo reagiram, mas a essa altura os homens de Bianor já estavam invadindo o castelo. Tive a impressão de que o exército de Bianor havia aumentado consideravelmente.
Neandro continuava a frente do exercito. Não consegui enxergar Linfa, Thalassa, Tales e Cosmo. O exército de Bianor realmente estava crescendo, mas não conseguia ver de onde eles surgiam.
Os homens de Bianor entraram rapidamente no castelo. A imagem do espelho mudou neste instante. Agora mostrava o interior do castelo.
Linfa e Thalassa estavam lá dentro, junto com um pequeno exército que lutava inutilmente contra os homens de Bianor. Eles pareciam invencíveis.
A imagem no espelho novamente mudou. Agora estava na sala do trono. Rei Céleo é outro pequeno exército que estavam visivelmente prontos para qualquer coisa.
Bianor invadiu a sala do tono sozinho. O exército que estava com Rei Céleo reagiu no mesmo momento, mas foram jogados janela a fora com um simples sopro de Bianor. Era horrível constatar que Bianor estava aprendendo a usar todo o poder que lhe foi dado.
– O que você quer? – Rei Céleo perguntou – Já não basta o que você está fazendo? Veio tripudiar em cima de mim?
– Não exatamente. – Bianor sorriu – Mas sabe que não seria uma idéia ruim. Mas eu não gosto de me vangloriar de um feito que ainda não foi concretizado. Mesmo esse sendo apenas uma questão de tempo para se cumprir.
– Você é um doente! – Rei Céleo gritou – Nós lutaremos até vencer.
– Eu não colocaria tanta confiança nessas palavras. – Bianor continuou sorrindo – Agora que Beatriz e Mallory estão sob meu poder, nada poderá salvar-lo.
– Agora eu que não colocaria tanta confiança nas suas palavras. – Rei Céleo rebateu.
– Você ainda tem esperanças? – Bianor levantou a sobrancelha – Meu plano vai seguir exatamente como eu quero.
– Aquele plano insano? – Rei Céleo perguntou.
– Plano esse que você poderia ter compartilhado. – Bianor se aproximou do trono – Apenas pessoas atrasadas como você não enxergar a magnitude desse plano.
– Um plano onde é preciso matar pessoas nunca será contemplado. – Rei Céleo gritou.
– Não são pessoas! – Bianor agora parecia ofendido – São seres que de nada valem para a evolução de Ofir. Seres inferiores e que só atrapalhariam a criação da Ofir unificada. Vai ser maravilhoso quando eu juntar todos os reinos em uma única Ofir, onde apenas eu governarei. Uma Ofir onde apenas os fortes terão espaço.
– O que você quer fazer é desumano! – Rei Céleo continuou gritando.
– E desde quando esses fracos são humanos? – Bianor também gritou – Nosso mundo está infestado por raças podres, começando por esses seres errantes. A maior aberração que esse mundo já viu.
– Mas eles existem! – Rei Céleo não parecia bem – Eles existem e tem sentimentos. Eles são como nós.
– Você é como eles! – Bianor não parava de gritar – Você e todos os que pensam assim. São pessoas como você que eu quero fora da minha Ofir. Não existe piedade no progresso.
– Você está muito enganado! – Rei Céleo estava alterado – Só existe progresso se esse for baseado em compreensão, respeito, honra. Coisas que você não conhece.
– Não me apareça com essa demagogia barata! – Bianor explodiu em raiva – Compreensão? Respeito? Onde estavam essas coisas quando você expulsou seu próprio filho do trono apenas por ele não ser mais exemplo para o povo. Aceitar um casamento de um príncipe com uma plebéia não deveria ser um ato de compreensão e respeito?
– Não coloque os meus filhos no meio dessa sua intriga! – Rei Céleo gritava pra valer agora – Você não sabe o quanto eu me arrependo de ter feito isso. Mas isso é apenas um pequeno detalhe, insignificante para ser honesto, perto do que está fazendo.
– E o que eu estou fazendo? – Bianor gargalhava debochado – Tudo o que eu quero é transformar Ofir em um mundo melhor. Um lugar para se viver com dignidade. Claro, apenas quem merece isso.
– Seu monstro de espírito pobre e coração vazio! – Rei Céleo realmente não estava bem.
– Não tente me ofender com palavras de impacto. – Bianor sorriu – Você deveria saber que não me impressiono facilmente.
– Não mesmo! – Rei Céleo quase sussurrou – Você não faz parte dos seres vivos. Você é uma coisa sem sentimentos que apareceu.
– Eu me sinto mais vivo do que nunca – Bianor passava a mãos no próprio corpo – mas se tem tanta curiosidade em saber como é o mundo dos mortos, eu posso te dar uma ajuda.
Fiquei triplamente desesperada. Bianor e morte não eram palavras que combinavam muito bem. Seja lá o que estivesse passando pela cabeça de Bianor, sem dúvida não era algo bom.
Sentia uma presença atrás de mim e um suave reflexo no espelho, bem atrás do meu. Era Mallory.
– Eu preciso fazer alguma coisa! – disse desesperada.
– Mas o que você tem em mente? – Mallory perguntou.
– Eu não sei. – respondi sem saber se era possível ficar mais desesperada do que eu já estava.
– Eu sei como podemos voltar. – Mallory flutuou até meu ouvido.
– E não me disse isso antes por quê? – perguntei irritada.
– Ele poderia nos ouvir. – Mallory respondeu – Ele nos ouve o tempo inteiro. Mas agora ele está concentrado com outras coisas.
– Não me interessa se ele está ou não nos ouvindo! – gritei – Apenas diga como eu posso voltar para lá.
Neste instante a porta da sala do trono bateu. Era Neandro que entrava para defender o pai. Bianor estava enforcando Rei Céleo, o levantando até o teto sem sequer encostar a mão nele.
– Solte meu pai! – Neandro gritou.
– Calado! – Bianor fez um gesto com a outra mão.
Neandro pareceu assustado e não falou mais nada. Ele mexia a boca de forma estranha, como se tivesse tentando abrir-la, mas não conseguia. Provavelmente algum feitiço de Bianor para fechar a boca dele.
Uma luz forte atingiu o local pouco antes de Neandro tentar atacar Bianor novamente. Era a Rainha Alina. Agora eu estava prestes a enlouquecer.
– Bianor, solte-o! – ela gritou – Eu me entrego no lugar dele.
Neandro arregalou os olhos, apavorado.
– Eu já não preciso mais de você Alina. – Bianor não tirava os olhos do Rei Céleo – Você é carta fora do baralho. Já deveria estar morta faz tempo.
– Eu não posso deixar que você faça...
– Cale a boca você também! – Bianor fez a Rainha Alina voar em direção a parede. Neandro estava paralisado.
– Eu... não... posso... – Rainha Alina estava sem fôlego.
De repente um vento forte começou a invadir a sala. Tudo estava sendo posto para o ar. Cadeira, estantes, vidros se quebrando, a sala estava sendo destruída e as únicas coisas que continuavam no mesmo lugar era a Rainha Alina, Rei Céleo, Bianor e Neandro. Era a Rainha Alina quem estava fazendo a tempestade. Infelizmente foi inútil. Ela caiu desmaiada.
– Rápido! – gritei – Não temos mais tempo.
– Você precisa me aceitar de volta Beatriz. – Mallory falou.
– O quê? – estava confusa.
– Não haverá outra maneira, apenas essa. – Mallory estava calma.
– Eu te aceito de volta – falei – Agora vamos!
– Você não está fazendo isso da forma correta Beatriz! – Mallory flutuava.
– Mas eu não te aceitei de volta? – gritei.
– Você apenas disse. – Mallory continuava flutuando.
– E o que eu preciso fazer? – continuei gritando.
– Precisa me aceitar de volta. – Mallory falou sem expressão.
– Você já disse isso! – já tinha perdido a paciência.
– Você precisa me aceitar de volta – Mallory continuava sem expressão – Eu e você precisamos voltar a ser uma única pessoa.
– E como eu e você...
– O coração Beatriz! – Mallory me interrompeu – Você precisa querer que eu volte de coração.
– De coração? – perguntei.
– Você ficou com o coração e a alma quando fomos divididas. Eu sou apenas o que você tinha de ruim. A nossa verdadeira consciência está com você. Só você pode querer isso.
– Eu? – minha cabeça doía.
– Apenas assim eu poderei voltar e apenas assim você salvará Ofir! – Mallory já não tinha mais os olhos tão aterrorizantes.
Fechei os meus olhos e, por impulso, segurei as mãos de Mallory. Eu não sabia se estava fazendo da forma correta, mas tinha que tentar de qualquer jeito.
O que era mais importante para mim? O que eu realmente queria? Tudo o que eu mais queria era salvar Ofir. Já me sentia parte desse mundo. Eu era parte desse mundo. Não queria ver uma parte minha sendo destruída tão covardemente. E eu precisava da Mallory junto de mim novamente para que isso acontecesse. Não existe outro jeito.
– Eu quero de volta a parte de mim que me foi roubada para salvar a outra parte de mim que está sendo destruída. – pedi de coração.
Uma sensação estranha e inexplicável tomou o meu corpo. Não conseguia enxergar mais nada. Tudo o que eu conseguia era sentir algo mudando em mim. Sentia novos sentimentos, sentia outra força, enxergava novas memórias. A Mallory estava voltando a fazer parte da minha alma. Separadas há tanto tempo, mas que agora pareciam estar ligadas desde sempre.
Quando voltei a enxergar estava no meio da praça de Ofir. Uma verdadeira guerra estava acontecendo ali. Pessoas espalhadas para todos os lados fazendo o seu melhor para defender o seu lado da história.
Já estava pronta para me defender de qualquer golpe, mas pareciam estar me ignorando. Era como se eu não tivesse importância alguma ou não representasse uma ameaça a eles. Mas eu não estava com tempo para me sentir ofendida. Eu era uma garota com uma missão.
Cheguei ao castelo feito louca. As coisas nos portões estavam mais calmas. Aparentemente a batalha que havia iniciado ali acabou migrando para a praça. O castelo estava completamente deserto. Nenhum sinal de vida.
Corri para a sala do trono, torcendo para que ainda desse tempo de fazer alguma coisa, mas eu havia chegado tarde demais.
A Rainha Alina continuava desmaiada em um canto qualquer da sala. Bianor colocava o trono, que havia sido atirado para o outro lado da sala, de volta ao seu lugar. Neandro chorava jogado ao chão, deitado no corpo do pai. Não precisava dizer mais nada, eu já sabia. Rei Céleo estava morto.