As coisas por aqui estavam extremamente entediantes. Tudo beirava ao insuportável às vezes e a solidão não era exatamente uma ajuda. Era um problema. Um grande problema para ser bem honesta.
A minha casa viva quase um silêncio absoluto. De vez em outra alguém batia na porta – sempre fechada – como se eu nunca tivesse descoberto a verdade sobre eles. Eu nunca abria. Nunca. Esperava até o momento em que desistissem. Eu tinha muito medo deles.
Minha única distração eram meus momentos com os cadernos.
Televisão e computador estavam ali apenas de enfeite. Nenhum deles funcionava. Sequer tinha tomadas para tentar ligar-los. Acabava passando meu tempo escrevendo. E o tempo era “generoso” comigo e me deixava ficar escrevendo até minha mão ficar dormente.
Eu escrevia sobre tudo. Desde minhas frustrações em não conseguir escapar dali, passando pela minha saudade do Alexis até os momentos de loucura que quase tomavam conta de mim por causa da solidão.
Outra coisa que sempre evitava era olhar no espelho. Sempre que fazia isso via a imagem da falsa Mallory refletida e não a minha. Aqueles olhos maléficos, nunca consegui notar mais do que isso. Eles me davam muito medo, mas ao mesmo tempo pareciam tão familiares. Era como se, mesmo com toda a maldade que emanava deles, eu pudesse confiar naquele ser sinistro. Eram sentimentos confusos que eu não gostava nenhum pouco de sentir.
Por várias vezes eu tentei sair daquele local. Esse que simulava ser minha casa. Mas era impossível. A magia não funcionava muito bem por aqui. Pelo menos não da forma como eu gostaria que ela funcionasse. Eu ainda conseguia fazer as coisas flutuarem e o fogão ligar sozinho, mas não saia muito disso.
Às vezes eu acabava olhando pela janela. Não era exatamente a coisa mais sensata a se fazer, mas ficar trancada dentro de uma casa completamente vazia não dá muitas opções.
Ficava observando aqueles projetos de zumbi com cara de gente. Agindo como se tudo aquilo fosse real, como se aquela fosse realmente a vida deles. Como conseguiam fingir mesmo sabendo que eu já havia descoberto toda a verdade? Será que queriam me assustar criando um clima de filme de terror?
Virei-me e tive uma desagradável visita surpresa.
– O que você está fazendo aqui? – fiz questão de ser seca.
– Não imaginei que me receberia com tanta hostilidade. – Bianor respondeu debochando – Achei que viria me agradecer pelo belo... hotel que criei especialmente para você.
– Claro, um “hotel” repleto de zumbis que ficam me vigiando dia e noite. – zombei – Sem dúvida estou adorando. Principalmente o fato de não poder sair daqui.
– Não seja tão ingrata menina. – Bianor disse sério – Eu preciso te manter segura e preciso estar seguro de que você não fugirá.
– Como se eu pudesse. – bufei – Como você entrou aqui?
– Não é óbvio? – Bianor gargalhou – Eu criei esse mundo para você. Posso sair e entrar a hora que bem entender.
– Então você vai começar a me fazer visitinhas? – fiz cara de nojo – Que ótimo!
– Talvez eu volte, mas talvez essa seja a minha única aparição por aqui. – Bianor parecia estar orgulhoso com seja lá o quê que ele estava pensando.
– Você é um louco. – zombei outra vez.
– Sabe que não foi difícil criar esse mundo. – Bianor sorria agora – Na verdade foi mais fácil do que esperava. Os espelhos tem se tornado grandes aliados em minhas, acho que posso chamar assim, empreitadas.
– Por falar em espelhos – lembrei – Você poderia tirar aquela falsa Mallory do meu espelho. Acho que não é necessário.
– Em primeiro lugar aquela não é a “falsa Mallory” – Bianor fez aspas com os dedos – Segundo, ela é necessária sim. Ela quem está vigiando você. Mas acho que posso retirar-la do espelho.
– Muito obrigada. – respondi em tom de deboche.
– Pelo menos você mostrou algum agradecimento. – Bianor deu um sorriso torto – Beatriz, eu não quero seu mal, apenas quero que você entenda que eu não posso deixar ninguém atrapalhar meus planos.
– Sério? – continuei debochando – Ótimo, vamos então a parte que me importa.
– Diga? – ele juntou as mãos.
– Para que você veio? – fui direta.
– Eu precisava ver com meus próprios olhos que você estava segura. – Bianor respondeu sério.
– Por quê? – perguntei.
– Eu prometi ao Alexis que não encostaria um dedo sequer em você. Por mais que eu quisesse. – Bianor olhou de forma estranha para mim – Você cresceu tanto desde a primeira vez que te vi. Em todos os aspectos.
– Você é nojento! – gritei – Espere! Você esteve com Alexis? Falou com ele?
– Sim. – ele voltou a sorrir – Aquele jovem príncipe tolo. Nem percebeu que estava caindo em uma armadilha.
– O que você fez com ele? – avancei no pescoço de Bianor.
– Calma Beatriz, não seja antecipada. – Bianor soltou minhas mãos de seu pescoço sem fazer absolutamente nada – Guarde essa luta para o momento certo.
– Onde está o Alexis? – eu estava imóvel.
– Ele está seguro e está bem. – Bianor seguiu em direção ao espelho do banheiro – Ele também está em outra dimensão, mas não tem tantas regalias como a sua. E ele provavelmente está nos vendo agora. Se bem conheço o Alexis ele deve estar vermelho de raiva.
Bianor olhou o espelho como se estivesse procurando por alguém. E pelas expressões de felicidade que seguiram depois, parece que ele encontrou. Bianor começou a gargalhar do nada. A principio eu levei um susto, mas depois a cena começou a ficar cômica demais para ser verdade.
– Que você é um louco todos já sabem – tentei me mexer – mas não precisa ficar demonstrando isso desta forma. É ridículo demais.
Bianor mexeu o dedo indicador e me fez flutuar até ele como se estivesse sendo puxada por uma corda invisível. Ele me segurou pelo braço e começou a encarar o espelho.
– Eu disse que ela estava sã e salva não disse? – Bianor falava para... o espelho? – É assim que ela vai ficar até chegar a hora de libertar-la. Eu prometi que a manteria segura e eu não sou homem que quebra suas promessas.
– Só quando lhe convém. – completei.
– Não me obrigue a fechar sua boca também. – Bianor parecia estar falando realmente sério agora.
– Você poderia ao menos me dizer com quem está falando? – perguntei, mas fui ignorada.
Bianor me soltou e pude novamente me mover. Ele continuou olhando para o espelho, mas desta vez parecia estar ouvindo alguém falar. Era muito estranho, mas vindo de Bianor nada era tão estranho assim.
– Muito bem. – ele quebrou o silêncio.
– Muito bem o quê? – falei alto.
– Nada de mais. – Bianor achou graça.
– Está rindo? – debochei – Me conta a piada.
– Nada de mais! – desta vez ele falou em um tom mais ameaçador.
– Ignorante. – fiz língua.
– Você já notou que não pareço mais uma ameaça a você? – Bianor era convencido.
– Tudo bem, você é louco. – falei alto – Mas você realmente não parece uma ameaça. Parece apenas um pequeno obstáculo que tenho que vencer. E vou vencer.
– Não se iluda Beatriz. – Bianor quase gargalhou – Você sozinha não é nada comparado a mim.
– É o que veremos! – falei desafiadora.
– Pois é realmente o que veremos. – Bianor sorriu – Mas não peça perdão no minutos finais de sua vida, pois depois que a batalha começar de verdade eu não terei piedade com ninguém.
– E eu estou morrendo de medo. – gostava de debochar de Bianor.
– Pois deveria me levar mais a sério. – Bianor levantou a sobrancelha – Você já está crescida o suficiente para perceber quando perdeu uma briga. Não me faça acreditar que ainda pensa como uma garotinha de 18 anos.
– Exatamente por não ser mais a mesma que você conheceu quase dois anos atrás que eu digo: não perderei essa batalha. – disse confiante.
– Vá sonhando. – Bianor sorriu.
– Você não estava de saída? – perguntei.
– Não, mas foi bom ter lembrado. – Bianor levantou o dedo indicador – Tem coisas importantes para fazer.
– Que tipo de coisas? – perguntei automaticamente.
– Não seja tão curiosa Beatriz! – Bianor balançou o indicador negativamente – Isso é muito feio.
– Acho que existem coisas mais horrendas – falei – tipo você.
– Atire pedras em mim. – Bianor deixou um leve sorriso aparecer – Aproveite enquanto pode. Depois que eu resolver esse pequeno problema que citei você não se sentirá tão por cima.
– Cale a boca! – gritei.
– Agora eu realmente estou de partida. – Bianor olhou pela janela – Que bonitinhos.
– Muito bonitinhos. – disse nervosa.
– A Mallory não vai mais aparecer no espelho. – Bianor falou – Pode olhar. Mas se algo de repente aparecer nele, não se assuste. Eu quero que veja uma coisa.
– Que coisa? – perguntei por impulso outra vez.
– Já disse para não ser tão curiosa. – Bianor sorriu.
Bianor sumiu de repente e sem deixar rastros. Parecia até aqueles efeitos de séries dos anos 60 do tipo com bruxas e gênios da lâmpada. E agora eu estava sozinha outra vez. Não completamente sozinha. Agora eu tinha uma preocupação, uma desconfiança e alguém atrás do espelho. Que maravilha!