– Cadê a cicatriz no seu braço? – Nicardo falou alto – Ela parece estar sumindo.
– O que você disse? – disfarcei.
– Achei que não soubesse como fazer o antídoto. – Nicardo puxou meu braço – Está sarando rápido.
– Tire as mãos do meu braço cabeça de pedregulho! – puxei meu braço para longe das mãos de Nicardo – Não é nada disso.
– Então o que é? – Nicardo perguntou.
– Eu... Eu esfreguei as folhas no meu braço – continuei disfarçando – Foi isso.
– Sério? – Nicardo não estava acreditando – Não acho que seja assim tão simples.
– Pois eu acho que pode ser mais simples do que imagina. – bufei – Você é muito desconfiado.
– E você não dá motivos para acharmos que está escondendo algo de nós. – Nicardo continuou me fitando desconfiado.
– Queria saber como você consegue ser tão chato. – bufei novamente.
– Eu também queria saber quando você vai crescer de verdade e nem por isso fico dando showzinhos. – Nicardo não parecia muito maduro dizendo isso.
– Eu dando show? – perguntei – Está me achando com cara de que?
– Muitas coisas. – Nicardo deu um sorriso debochado – Mas nem todas eu posso dizer.
– Você se acha o sabichão. – Nicardo tinha uma habilidade especial para me tirar fora do sério. Não queria admitir, mas ainda tinha muito ciúme. Eu não via mais tanta paixão nos olhos dele, mas sabia que ainda era apaixonado por Beatriz.
– Vocês dois! – Amadeus interrompeu – Acho que temos algo mais importante para fazer.
– Desculpe. – Nicardo se recompôs – Você tem razão. Temos algo mais importante.
– Você acha que não sei. – tentei não gritar – Se tem alguém que se importa realmente em resgatar Beatriz esse alguém sou eu.
– Sério? – Nicardo ironizou – Não parece.
– Vocês vão começar de novo? – Amadeus quase puxou nossas orelhas.
– Desculpe – Nicardo e eu dissemos quase juntos.
– Agora eu quero que vocês dois apertem as mãos e façam as pazes. – Amadeus saiu do meio de nós dois.
– Está falando sério? – Nicardo falou alto.
– Eu não aperto qualquer mão. – fui mais rude do que deveria. Não gosto muito quando a força do habito fala mais alto.
Amadeus ficou olhando para nós dois com olhos pidões. Não era de cair em chantagens emocionais, ainda mais feitas por homens, mas algo naquele olhar me fez querer fazer tudo se resolver logo. A sensação era quase torturante.
– Muito bem! – Amadeus bateu palmas quando apertamos as mãos – Agora vamos entrar no submarino e planejar algo para mais tarde.
Neandro havia deixado um submarino conosco. Poderíamos precisar. Corrigindo: iríamos precisar. Os soldados voltaram junto com Nicardo nos outros submarinos. Ficamos apenas Nicardo, Amadeus e eu. Com o tempo eu e Nicardo aprendemos a manejar com perfeição essas máquinas de Cosmo. Alis, como estaria aquele maluco? E Thalassa e Linfa? E Beatriz? Sem dúvida essa é a que me dava mais motivos para me preocupar. Eu preciso urgente achar um meio de trazer-la de volta. Não só por Ofir, mas por mim também. Já não posso viver sem ela.
Estava em dúvida se deveria ou não contar a Nicardo e Amadeus sobre Daros e a caverna escondida. Apesar de não gostar dele, em Nicardo eu sabia que não teria problemas e poderia confiar. Agora Amadeus ainda era um mistério. Eu não consigo engolir a história que ele contou. Essa coisa de “príncipe preso por anos nas masmorras sendo criado por serviçais”, sério, isso não me convenceu. Essa história parece fantasiosa demais. Claro, pode ser verdade. Mas e se não for?
– Pensando muito? – Nicardo olhou sério para mim.
– O que você acha? – perguntei.
– Tem certas coisas confusas. – Nicardo falou mais baixo – Não sei dizer exatamente. Por alto não parece ter motivos para desconfiar, mas ainda é um mistério. Mas a história é real.
– Você já foi melhor. – disse um pouco mais alto do que deveria.
– Magia forte. – Nicardo colocou o indicador na frente da boca – Sempre complica as coisas.
– Quem usa magia forte? – Amadeus apareceu na nossa frente.
– Beatriz! – Nicardo respondeu rápido – Poderíamos rastrear-la, mas a magia dela é forte e acaba causando interferências.
– E você sabe rastrear uma pessoa? – Amadeus pareceu acreditar.
– Não. – a voz de Nicardo ficou em um tom cômico – Acredita nisso? Não sei nem por qual raio de motivo eu toquei nesse assunto.
– Que pena. – Amadeus acreditou – Se pudéssemos rastrear-la seria uma mão na roda.
– Séria mesmo. – Nicardo disfarçava bem.
– Mas no meu sonho ela estava em uma dimensão paralela. – lembrei – A menos que soubéssemos a entrada exata do portal não adiantaria nada. Fora que apenas quem cria o portal pode abrir-lo.
– Mas você conseguiu abrir uma passagem. – Nicardo lembrou – No castelo de Calidora, quando você e Beatriz foram parar naquele labirinto subterrâneo.
– Aquele foi um caso diferente. – falei assustado.
Naquela época era como se não fosse mais eu. Desde que quase virei um ser do bosque muita coisa mudou em mim. Quando tomei de volta minha identidade eu senti um poder novo invadindo meu corpo. Era como se eu pudesse fazer muito mais do que eu julgava saber fazer. E naquele momento, quando coloquei a mão no chão da sala do trono, algo mais poderoso que qualquer outro tomou o controle. Eu tinha plena certeza de já não era mais eu mesmo ali. Quando as coisas se acalmaram, esse poder se aquietou também. E está adormecido até agora.
– Eu estive pensando muito sobre isso. – Nicardo falou – Talvez devêssemos voltar ao castelo e ir para a sala do trono. Talvez a chave para acharmos Beatriz esteja lá.
– Mas não acha esse plano maluco demais? – Amadeus ficou preocupado.
– Talvez, mas não temos muitas opções. – Nicardo tentava tomar a liderança. Tinha que fazer algo.
– Nós iremos ao castelo. – disse – Vamos entrar na sala do trono, talvez possamos encontrar uma passagem por lá.
– Mas foi exatamente o que eu sugeri. – Nicardo fez uma cara confusa.
– Mas eu disse com mais classe. – estufei o peito.
– Claro. – Nicardo sorriu debochado – Tinha que ser você. Eu não estou tentando te tirar da liderança, estou apenas sugerindo um plano.
– E eu não estou com medo de que me tire à liderança. – tentei parecer convincente.
– Sei. – Nicardo levantou a sobrancelha direita.
– Vamos continuar armando o plano? – Amadeus já reparava que estávamos prestes a iniciar uma discussão.
– Vamos. – disse – Acho melhor agirmos à noite.
– À noite? – Nicardo perguntou.
– Á noite! – confirmei – Os guardas são em menor número e a cidade fica mais escura. Ficará mais fácil de entrarmos. Não temos mais um exercito nos dando cobertura.
– Alexis tem razão. – Amadeus falou – Todo cuidado é pouco.
– Mas como iremos entrar? – Nicardo perguntou.
– Isso eu ainda não sei. – falei.
– Precisamos pensar rápido se quisermos fazer isso à noite. – Nicardo disse em tom repreensivo – Logo vai começar a escurecer.
– Alguma idéia? – perguntei.
– Vamos pensar. – Nicardo tentou não ficar constrangido por também não ter uma idéia.
Pensamos e pensamos e acabamos decidindo por entrar por debaixo da ponte que levava ao castelo. Era muito arriscado, mas podia dar certo. Talvez estivéssemos todos loucos mesmo. Ainda estava tentando me convencer de que esse não era um plano amador e arriscado.
Chegamos à cidade no momento em que as tochas do castelo foram acesas. Ficamos esperando o momento certo para entrarmos no pequeno rio que havia sido montado em volta da entrada do castelo. Até que eu vi uma coisa. Ou melhor, uma pessoa.
– Indo para o castelo? – ouvi uma voz perguntando.
– Com certeza. – um homem gordo e de chapéu de palha respondia de cima de uma carroça – Se não entregar isso posso ter minha cabeça cortada.
– Que ótimo. – a outra pessoa pareceu não estar prestando muita atenção no que o homem gordo estava falando.
O homem gordo esperou a pessoa – que depois consegui identificar como uma mulher – passar para descer da carroça.
– Preciso mesmo me aliviar. – o homem gordo olhou para os lados e seguiu em direção a algumas moitas escondidas.
– Mudanças de planos! – cochichei.
Rapidamente entramos todos na carroça. O homem gordo parecia estar mesmo precisando se aliviar. Nos agachamos e nos cobrimos com a grande manta que cobria vários sacos. Estava torcendo para que nenhum guarda resolvesse conferir o carregamento da carroça. Não queria uma luta surpresa.
Depois de alguns minutos o homem gordo voltou assobiando e seguiu em direção ao castelo. Tentamos fazer o menos número de barulhos possíveis, mas o homem cantava com tanta dedicação que provavelmente não notaria nenhum outro barulho além de sua voz desafinada. De repente a carroça parou.
– Quem vem? – um guarda respondeu – É você!
– Trousse o pedido. – o homem gordo parecia orgulhoso.
– Muito bom. – o guarda era inexpressivo – Agora leve-o até o local de sempre e suma daqui.
– Como sempre faço. – o homem gordo tentou levar na esportiva – Sabe dizer se a vossa majestade, Rei Bianor, precisará de mais desses?
– Se precisar ele te procurará! – o guarda continuava inexpressivo.
– Espero já ter encontrado alguém para lapidar-los. – ouvi o barulho dos portões abrindo – Não é qualquer um que sabe usar-los para construir algo tão grande.
– Os portões já estão abertos. – a falta de emoção na voz do guarda já estava me irritando – Faço logo o que tem que fazer e pare de nos importunar.
– Muito obrigado. – senti um tom de deboche sendo engolido a seco.
A carroça voltou a ficar em movimento e resolvi conferir o que estava sendo transportado. Nicardo me olhou repreensivo quando me viu abrindo um dos sacos, mas logo mudou para expressões de surpresa. Expressões que eu também compartilhei.
O saco estava cheio de pedaços de cristais. Todos ainda em sua forma bruta. E se todos aqueles sacos estivessem cheios do mesmo conteúdo já tínhamos ganhado mais um motivo para preocupação.
A carroça parou novamente e ouvimos o homem gordo descer. Esperamos os passos dele ficarem distantes até fazermos qualquer coisa. Assim que tive certeza de que o homem gordo joguei a manta branca para fora da carroça. E claro, tive outra surpresa.
– Vocês? – um dos quatro guardas se assustou.
– Você tinha que tirar a manta branca justamente agora. – Nicardo se preparava para a luta.
– Acho que, definitivamente, não é hora para esse tipo de briga. – Amadeus também se preparava para lutar.
Estávamos em um tipo de depósito. Não havia muitas coisas. Tinham algumas carruagens, retratos dos reis antigos de Calidora, alguns objetos que não identifiquei e apenas os quatro guardas estavam presentes. Para nossa sorte.
Não fizemos muito esforço para derrotar-los. Na verdade foi até divertido. Acho que estávamos um pouco enferrujados, mesmo não tendo nem uma semana direto desde a nossa última batalha na Praça de Calidora. Mas já haviam acontecido tantas coisas que aquilo me pareceu uma eternidade.
Amarramos os guardas e pegamos suas armaduras. Não era exatamente a idéia mais original do mundo, mas tem dado certo em quase todas as vezes que foi executada. Agora precisávamos torcer para conseguirmos entrar na sala do trono sem levantarmos suspeitas.
O castelo de Calidora estava muito diferente. Haviam varias pinturas de Bianor espalhados por todos os cantos. Além de várias estatuas em cada corredor, sempre posando como o grande herói da nação. Era estranho ver tudo aquilo. Na verdade era quase apavorante. Quase não, era apavorante.
– Acho melhor nos dividirmos. – sugeri.
– Não. – Nicardo cortou rápido a idéia – Precisamos ficar juntos. Seria muito arriscado.
– Nicardo está certo. – Amadeus também concordou.
– Claro. Ignorem minhas idéias. – tentei parecer ofendido.
Eles tinham razão. Foi uma idéia boba. Mas eu não podia ficar dando muitos créditos para esse dois. Era melhor manter a pose de soberano ou eles montariam em cima de mim. Odiava sentir isso, mas às vezes Nicardo parecia ser uma pessoa bem melhor que eu.
Seguimos direto para a sala do trono. Não havíamos muito tempo para perder. Não acreditava mesmo que o portal pudesse continuar sendo ali. Ainda mais depois do incêndio que causamos fugindo daquele labirinto e enfrentando aqueles monstros e homens sombras dos quais tenho pesadelos até hoje. Mas de qualquer forma não custava tentar. Ou custava?
Abri as portas rapidamente e já entrei tirando o capacete de soldado. Começava a achar que estava realmente agindo com muita precipitação.
– Demoraram. – Bianor estava sentado no trono – Achei que não apareceriam mais.
– Do que você está falando? – perguntei. Odiava aquele silêncio constrangedor que sempre acontece em situações como essas.
– Não parece óbvio? – ele gargalhou – Claro. Vocês acharam que estavam me enganando.
– O que você quer dizer com isso? – Nicardo falou furioso.
– Olhem! – Bianor se levantou – Temos dois principezinhos no recinto. Que bonitinho. Mas eu já sabia. Aliás, eu estava esperando por vocês.