Linfa tentou falar, mas foi impedida por Nínive que pediu silêncio colocando o dedo indicador na frente da boca.
– Esperem um minuto! – consegui ler os lábios de Nínive.
Não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas achei melhor continuar fazendo o que Nínive sugeria. De repente ela estava no comando de tudo agora, o que me fez sentir um pouco estranha.
Nínive olhou em volta, como se quisesse ter certeza que não estava sendo observada por ninguém. Ela então voltou para mais perto de nós três e fez um sinal com a mão pedindo para que esperássemos mais um pouco.
Não sabia explicar bem o motivo, mas a presença de Nínive me fazia ficar mais confiante. Ela trazia uma segurança transparente e sentia como se ela não fosse deixar nada acontecer com nenhuma de nós. Mas ela não era tão digna de confiança. Ou era?
Nínive respirou fundo e abriu outro portal. Novamente fez um sinal pedindo silêncio antes que qualquer uma de nós pudesse respirar. Ela gesticulou para que entrássemos e foi exatamente o que fizemos. Ela entrou e fechou o portal como se houvesse um zíper invisível na entrada.
– Pronto – ela quebrou o silêncio – Agora podemos conversar com segurança.
– O que está havendo? – perguntei – E o que quis dizer com “conversar com segurança”?
– Eu também estava com saudades de você Beatriz. – ela sorriu – Bianor está dominando toda a Calidora com seus poderes mágicos. Tudo nesse reino acontece de acordo com os caprichos de Bianor. E para que ele tenha certeza de que não está sendo traído, ele colocou ouvidos em todas as paredes do castelo.
– Ouvidos? – estranhei – Claro! Aquele mesmo truque que ele usou em Leander quando estive aqui da primeira vez.
– Exatamente. – Nínive sorriu – Eu não estava muito ligada a Bianor nesta época, mas eu me lembro do acordo que ele fez com a velha Elma. Aquela velha cadela.
– Mas tecnicamente estamos dentro do castelo. – lembrei.
– Não. – Nínive respondeu com grande tranquilidade – Na verdade todo esse longo corredor não passa de um ilusão criada por mim. Essa é a minha magia. Eu crio ilusões. Até mesmo aquelas passagens são obras de ilusão, mas na realidade elas só existem se eu quiser que elas existam. A passagem que trousse vocês até aqui, por exemplo, não existe mais.
– Espere! – falei alto – Você nos trousse para cá de propósito?
– Sim. – ela respondeu – Vocês só conseguiram entrar sem serem notados por Bianor por causa disso. O selo da minha magia não permite que Bianor sequer saiba que eu faço esses truques.
Por um instante eu fiquei completamente sem palavras. Nínive era simplesmente incrível. Bianor era o mago mais poderoso deste mundo e ainda assim ela conseguia enganar-lo. Bianor realmente não deve estar sabendo administrar todo esse poder. Ou seria a Nínive que, por mais absurdo que pareça, consegue ser mais poderosa que Bianor? Quem estava sendo usado por quem? Agora a coisa começou a me assustar.
– Está me olhando de forma tão estranha Beatriz. – Nínive me fitou confusa.
– Não é nada. – continuei fitando-a – Apenas algo que estive pensando.
– Pensar às vezes pode encher sua cabeça de idiotices. – ela sorriu – Tente não raciocinar tanto. Vocês duas também. Digam alguma coisa, mas não pensem demais.
– Eu não tenho muito a declarar. – Linfa olhava ao redor – Tudo aqui parece um pouco lúdico. Eu sinto como se não houvesse chão.
– Mas não há chão. – Nínive sorriu – Esqueceu que isso é apenas uma ilusão. Ela será o que quiser que seja. Se não há chão para você, não haverá chão.
– Mas eu quero que tenha chão. – Linfa começou a falar – Um belo gramado. Uma grande árvore. O quintal da minha casa, Neandro ao meu lado.
– Muito bem. – Nínive suspirou – Se é o que você quer e o que terá.
– Meu quarto. – Thalassa começou a falar – Meu quarto no castelo de Neide. Sinto tanta falta do meu quarto. Minhas coisas. Eu deixei tudo para trás.
– E você quer que isso aqui seja seu quarto. Ele pode ser seu quarto. Basta você querer e ele se tornará. – Nínive falava suavemente.
– O que você está fazendo? – perguntei assustada.
– Nada de mais. – Nínive sorriu – Estou apenas dando a elas uma forma de relaxar. Elas buscaram aquilo que as deixam mais calmas. Aquilo que as relaxa. Elas irão acordar bem mais leves.
– Eu não sei explicar, mas eu sinto que posso confiar em você. – falei.
– E não poderia confiar por quê? – Nínive continuou sorrindo.
– Não sei. – uma estranha sensação tomou conta de mim. Eu queria apenas falar a verdade para Nínive – Você me transmite segurança. Eu sinto como se você pudesse me proteger. Mas você está do lado de Bianor. Isso não é motivo o suficiente para desconfiar?
– Motivo suficiente? – Nínive continuou sorrindo – Você está raciocinando demais. Não deveria ligar a minha pessoa com a de Bianor. Mas acho que você não quer descansar agora. Tudo bem, não há pressa. Conte-me algo.
– Algo? – continuei me sentindo estranha – Alexis e Neandro estão atrás de Nicardo e Amadeus. Eles desapareceram depois que um dragão imenso surgiu na praça. Você os viu?
– Não. – Nínive continuava sorrindo – Eu não vi meu querido irmão. Nem o Amadeus.
– Mas você não conhece o Amadeus! – senti um baque dentro de minha cabeça. Como se tivesse dormindo e acordado de repente.
– Beatriz, já disse para não pensar tanto. – Nínive agora não estava mais sorrindo. Estava séria – Pensar não faz bem. Eu já disse. Mas de qualquer forma, continue me contando tudo.
– Eu não deveria, mas estávamos tentando sabotar o exercito de Bianor. – falei sem pensar – Não queremos, quer dizer, queremos fazer com ele o mesmo que ele está fazendo com a gente. Ele está nos sabotando.
– Mas isso é um erro. – Nínive voltou a sorrir – O exercito de Bianor não está aqui.
– Não? –senti minha voz sair um pouco sonolenta.
– Bianor mandou seu exercito para Menelau. – Nínive falou – Ele está treinando seus homens por lá. Todos os dias ele segue com aquele cavalo alado para Menelau, só para ver se tudo está saindo como ele deseja.
– E o que ele deseja? – perguntei instintivamente.
– Não acha que está querendo saber demais? – Nínive soltou uma risada – Agora seja uma boa garota e pare de pensar, para o seu próprio bem. Você não quer descansar como suas amigas?
– Não! – novamente senti minha cabeça acordando – Eu preciso estar atenta. Eu não posso deixar que nada aconteça com nenhuma delas. Com ninguém para ser mais completa.
– Você se preocupa demais com os outros e quase não se importa com você. – Nínive voltou a ficar séria – Seja um pouco mais egoísta Beatriz. Esqueça todo mundo e pense em você. Se coloque em primeiro lugar. Você vai ver como é bom.
– Não posso fazer isso. – sentia que estava lutando contra algo dentro de mim.
– Claro que pode. – Nínive continuava séria – Ninguém irá morrer se você pensar um pouquinho em você. É só uma descansadinha, não é nada que seus outros amigos não já tenham feito. Eles não pensaram em você. Eles nunca pensam em você. Apenas você pensa neles.
– Apenas eu... – minha cabeça começava a doer – Eles estão sempre tão bem. Estão felizes.
– Isso – Nínive se empolgou – Você está indo bem. O que mais você vê?
– Eles não ligam para mim. – as palavras começavam a sair sem que eu quisesse – Eles estão vivendo as vidas deles. Nicardo está feliz, Thalassa e Cosmo estão felizes, Tales está feliz, Neandro e Linfa estão felizes, Amadeus está feliz, ele virou rei. Ele virou o rei de Calidora. Ele venceu a batalha.
– O que você está dizendo? – Nínive ficou furiosa. Sua voz ficou mais grave também.
– Amadeus venceu a batalha. – continuei falando – Ele venceu a batalha.
– Pare com isso! – Nínive havia mudado completamente de voz – Pare com isso!
– Sim ele vai vencer! – minha voz começou a ficar mais firme – Eu também irei vencer. Todos nós iremos vencer. Você será derrotado Bianor. Não há esperança para você.
– Cale a boca garota inútil! – agora eu reconhecia a voz. Era Bianor o tempo inteiro.
– Não tente me amedrontar. – falei confiante – Eu consigo ver claramente a minha vitória. Todos os seus esforços serão inúteis Bianor.
– Você não sabe o que diz! – Bianor gritou.
– E claro que eu sei. – continuei confiante – Eu sou Mallory, destinada a te destruir e trazer a paz de volta a Ofir. Você não será nada depois que todos nós acabarmos com você!
– Pare com isso. – Bianor ainda gritava – Lembre-se do que viu. Você está sozinha. Você sempre esteve sozinha. Eles estão felizes e nem querem saber de você.
– Eu não caio nesse truque outra vez. – as palavras saiam cada vez mais ferozes – Eu não caio em nenhum de seus truques.
– É o que veremos! – consegui ouvi Bianor sussurrar.
De repente um grande espelho apareceu na minha frente. O que eu vi refletido no espelho foi apavorante. Estava refletido não a minha imagem, mas a imagem de uma mulher demoníaca e apavorante. Ela parecia emanar crueldade e tinha certeza de que ela não teria piedade de ninguém. Seu rosto estava fitando o chão, mas algo me dizia que era melhor eu não saber o que estava refletido naquele espelho, fazendo exatamente os mesmos gestos que eu.
– Você está se tornando isso Beatriz. – Bianor falava vitorioso – Encare o rosto dela. Conheça finalmente a verdadeira Mallory!
O rosto atrás do espelho começou a se levantar devagar. O pavor tomou conta do meu corpo. O rosto era o meu, apesar do cabelo desgrenhado e picotado, o rosto continuava sendo o mesmo que o meu, mas os olhos estavam mudados. Havia sangue, havia desejo de morte, havia crueldade, havia tudo aquilo que eu mais repudiava. Simplesmente o inverso de tudo o que eu sempre tentei ser.
– Não gostou da sua nova forma Beatriz? – Bianor gargalhava – Honestamente, eu respeitaria muito mais você se sempre fosse assim.
Bianor se aproximou de mim. Seu reflexo estava vestido com trajes de rei, com direito a coroa e cetro dourado. Ele colocou a mão em meu ombro e sorriu.
– Veja Beatriz, que imagem belíssima. – ele admirava o reflexo – Você nasceu para ser a Mallory. E a Mallory nasceu para ser minha. Nós dois juntos nascemos para governar um novo Ofir, um mundo diferente deste. Um mundo mais justo e mais limpo, onde apenas aqueles que tem a força e a sabedoria superior podem viver.
– O que você está falando? – estava me sentindo estranhamente mais calma.
– Estou falando de um mundo renovado, um reino unificado. – ele falava maravilhado sobre seu projeto – Um mundo perfeito. Governaríamos um mundo de gigantes, pessoas tão incríveis e superiores. Um mundo de perfeição. Um mundo ideal para se viver.
– Esses são seus planos? – perguntei.
– Podem ser os seus também. – Bianor apertou minha mão – Beatriz, você é a garota mais poderosa que este mundo já conheceu. Eu sou o ser mais poderoso que esse mundo já conheceu. Juntos poderíamos governar soberanos. E com o tempo desenvolveríamos um poder inatingível por qualquer outro ser. Seremos os poderosos governando um mundo de poderoso.
– Mas para que isso aconteça, precisamos eliminar os fracos. Certo? – presumi.
– Vejo que você já entendeu. – Bianor sorriu – Este é exatamente o espírito. Não podemos deixar Ofir ser dominada por vermes.
– Compreendo. – consegui sorrir.
– Então você aceita se casar comigo? – Bianor se empolgou – Se quiser eu posso desistir de todas as outras esposas que queria ter. Nenhuma dela irá me importar se eu tiver você ao meu lado. Apenas diga que sim.
– Você libertaria Linfa e Thalassa primeiro? – perguntei.
– Para que? – Bianor ficou sério – Achei que tinha entendido que precisamos eliminar os fracos.
– E se eu as tornar fortes? – sugeri – Posso trazer-las para o meu lado.
– Para o nosso lado. – Bianor pareceu começar a gostar da idéia – Essa será a primeira prova de que eu realmente te quero como esposa. Não me decepcione ou enfrentará as consequência.
Bianor estalou os dedos e Linfa e Thalassa sumiram.
– O que você fez? – perguntei.
– As deixei em um quarto aqui no castelo. – Bianor sorriu – Elas logo irão acordar. Agora responda, você quer se casar comigo?
– Mas é claro – sorri – que não.
– Você quem decidiu assim. – Bianor ficou sério – Mas eu disse que você receberia as consequências.
A imagem no espelho começou a se dissolver e aos poucos o que eu conhecia como sendo eu voltou a se refletir no espelho. Bianor já não estava mais com os trajes de rei e a paisagem ao fundo também começou a mudar. Estava reconhecendo. Era a minha cidade, a rua que eu sempre passava para ir à escola. Era a Terra.
– Não posso deixar que você me derrote Beatriz. – Bianor parecia triste.
– O que você está pensando em fazer? – perguntei assustada.
– Você vai ver! – Bianor continuava triste.
Bianor me pegou pelo braço. Ele apertou com tanta força que cheguei a sentir o sangue parar de circular por um momento. Ele parecia não estar satisfeito com o que quer que ele fosse fazer.
– Você e eu poderíamos governar juntos um lindo mundo. – Bianor olhou dentro dos meus olhos – Adeus Beatriz!
Bianor me jogou com toda a força em direção ao espelho. Mas ao contrario do que imaginei, o espelho nas se estilhaçou em mil pedaços. Pelo contrario, ele continuou intacto.
Comecei a sentir algo me engolindo e quando dei conta eu estava sendo tragada pelo espelho.
Eu estava de volta a Terra. Mais uma vez.