A cobra, ou melhor, Astra – a essa altura eu já tinha me convencido de que o que eu e Alexis vimos era realmente um dos guardiões – não apareceu. Também não esperava que aparecesse novamente. Alexis e eu continuamos mantendo em segredo a aparição de Astra, por mais estranho que isso pudesse parecer. O que Alexis temia?
Saímos bem cedo e seguimos para o porto. Cosmo e sua equipe conseguiram mandar quatro submarinos para lá sem chamar muita atenção. Os submarinos percorreram um túnel subterrâneo. Assim como todo bom castelo, o da Capital também tinha seus segredos.
Alexis, Nicardo, Neandro, Linfa, Thalassa, Amadeus e eu seguimos no primeiro submarino, junto com mais oito soldados. O submarino estava maior que o primeiro e mais bem equipado. Cada submarino seguiu com 15 passageiros, totalizando um exercito de 60 soldados incluindo a “turma principal” – que agora contava com Amadeus e Linfa como oitavo e nono integrante. O número não é muito grande comparado ao que vamos enfrentar, mas não podíamos deixar a Capital desprotegida.
Minhas mãos gelaram no mesmo momento em que entrei no submarino. Talvez só neste instante que fui realmente perceber o que estávamos fazendo. Acabei me sentindo um pouco idiota, mas meu estômago embrulhou quando pensei nisso. Mas logo passou. Tinha coisas muito mais importantes para fazer naquele momento. Já era tarde demais para voltar atrás.
– Você está preocupada? – Nicardo se aproximou.
– Muito. – confessei.
– Não está confiando nesta missão? – ele perguntava como se estivesse certo que tudo iria correr bem.
– Não é questão de estar ou não estar confiante. – consegui manter meu tom de voz – Minha preocupação é com o que pode acontecer. Essa missão pode seguir como planejada e mesmo assim perdemos mais gente.
– Mas se perdemos alguém, já será algo fora do planejado. – ele tentou usar um tom de piada, mas logo se concertou quando percebeu que o assunto era sério.
– Você entendeu o que eu quis dizer. – disse séria.
– Acho que sim. – desta vez ele falou com mais seriedade.
– Eu sei que parece bobagem, mas eu sinto que se algo acontecer a qualquer um nessa guerra será culpa minha. – fitei o chão.
– Não fique guardando tanta responsabilidade para si própria. – Nicardo sorriu – Não é tarefa sua manter todos seguros.
– Claro que é! – falei mais alto do que gostaria – Eu vou salvar Ofir. Ou destruir-la.
– Algum problema por aqui? – Alexis praticamente se materializou do nosso lado.
– Só estávamos conversando. – Nicardo respondeu calmo.
– Poderia me juntar à conversa? – Alexis falou em um tom mais grosseiro do que educado.
– Sente-se! – Nicardo fez um gesto com a mão – Estava tentando convencer essa garota de que não é responsabilidade dela cuidar de todos.
– Ainda essa história? – Alexis se sentou quase bufando.
– Sim! Ainda essa história. – respondi nervosa.
– Beatriz, eu já disse que todos que estão aqui sabem dos riscos. – Alexis segurou minha mão – E eles querem fazer isso. Aposto como eles se sentiriam humilhados se fossem deixados de fora dessa luta. Eles estão fazendo isso não só pela honra a Ofir, mas por eles próprios.
– Alexis tem razão Beatriz. – Nicardo cortou o impulso de segurar minha outra mão – Se algo acontecer...
– Para de insinuar que pode acontecer algo! – novamente falei mais alto do que gostaria.
– Tudo bem. – Nicardo se levantou – Só não tome todo o peso do mundo para você.
– Acha mesmo que eu não já tentei? – voltei ao meu tom normal – Eu tento colocar na minha cabeça essa maldita idéia, mas não entra. Provavelmente meu cérebro entraria em curto se eu insistisse mais.
– Você é realmente uma caixinha de surpresa Beatriz. – Nicardo sorriu – Sabe que desde que voltei da Terra nunca mais consegui ver o que se passa na sua cabeça?
– Engraçado. – esqueci da batalha que estávamos prestes a travar – Eu também não consigo mais ver a mente de ninguém. Quando voltei do meu “coma” eu ainda sentia as intenções das pessoas, às vezes conseguia visualizar exatamente o que se passava dentro da cabeça de cada um. O que será que houve?
– Eu continuo sabendo o que se passa na cabeça de todos. – Nicardo sorriu – Mas quando tento ver sua mente... É estranho.
– Como assim estranho? – fiquei assustada.
– Não é como se não houvesse nada. – ele agora parecia falar para si próprio.
– Você está me assustando. – falei.
– E está me assustado! – Alexis arregalou os olhos.
– As coisas que passam na sua mente são um absoluto mistério para mim. – Nicardo voltou para nós – Elas aparecem e desaparecem. É como se sentissem que estão sendo observadas e se escondessem de mim.
– Definitivamente eu estou com medo. – levantei.
– Aonde você vai? – Alexis perguntou.
– Para ali. – apontei para uma direção qualquer – Não há muitas opções dentro desse submarino. Mesmo ele sendo do tamanho que é.
– Desculpe Beatriz, mas não pude controlar. – Nicardo se levantou – E que quando começo a pensar nisso...
– Tudo bem. – o interrompi – Se você puder nunca mais falar sobre esse assunto já estará mais que desculpado.
– Entendi. – ele sorriu.
– Chegamos! – Neandro me assustou.
– Já? – falei alto.
– Cosmo fez várias melhorias nesses submarinos. – Neandro deu um leve sorriso.
– Ótimo. – bufei – Chegou à hora.
– Beatriz – Alexis me abraçou – você tem que pensar positivo.
– Claro! – fiz cara de deboche – É muito fácil pensar positivo em casos como esse.
– Você está muito nervosa! – Neandro me fitou assustado – Não deveria ficar tão tensa antes de uma luta. Estamos todos nervosos, mas temos que tentar manter a calma.
– Para vocês é muito simples. Não serão vocês que irão salvar ou destruir Ofir. – gritei.
– Beatriz! – Alexis ficou sério – O que está acontecendo com você? Eu já não estou te reconhecendo. Você sempre foi um pouco estressada, mas agora está exagerando.
– Alexis – respirei fundo – Tudo bem. Eu já estou melhor. Você tem razão, acho que estou exagerando um pouco. Podemos seguir para a missão?
– Podemos? – Neandro rebateu olhando diretamente para mim.
– Podemos! – tentei parecer confiante.
– Ótimo! – Neandro sorriu – Vamos seguir com a missão.
– Quando quiser! – Alexis tentou quebrar o clima dando uma entonação mais cômica a frase.
Estava tudo saindo como planejado. Assim como havia sido previsto, a parte norte de Calidora não havia uma viva alma. Na verdade havia alguns guardas, mas eles pareceram não perceber e estavam um pouco distantes.
Neandro saiu na frente e Alexis o seguiu. Depois saíram Nicardo e Amadeus e por fim Thalassa, Linfa e eu. Seguimos disfarçados até o caminho que levava para a cidade do castelo. Neandro deu o sinal e um dos soldados que estava de vigia começou a comandar os homens que haviam viajado em nosso submarino. Eles se espalharam pelo local e pegaram os guardas de surpresa. Assim que a barra ficou limpa eles deram o sinal para os homens do outro submarino. Seguimos todos para a cidade.
Calidora não parecia mais a mesma. As casas medievais deram lugar a mansões imensas e luxuosas. As pequenas lojas que existiam ali, agora eram quase um shopping de tão grandes. Seja lá o que Bianor estivesse planejando, de uma coisa eu tive certeza quando vi a cidade: Bianor quer tudo, menos destruir Ofir. Mas existe algo de muito errado nisso tudo.
Continuamos seguindo discretamente. Espalhamos-nos com o povo, que parecia bem menor agora. Outra coisa estranha foi as expressões das pessoas. Elas pareciam tão superficiais e egoístas. Andavam e agiam como se existissem apenas eles no mundo. Calidora estava virando um reino de magnatas e isso era definitivamente estranho.
– Você também percebeu? – Alexis cochichou.
– Que está tudo muito estranho por aqui? – perguntei.
– Bianor fez alguma coisa muito séria. Ainda não sei dizer o que. – ele olhava em volta.
– Mas desconfia. – completei.
– Sim. – ele continuava olhando ao redor – Desconfio.
Não sabia do que Alexis desconfiava e nem me lembrei de perguntar. As coisas estavam rumando para um caminho tão inesperado que começava a temer pelo pior. E isso, claro, não era nada bom.
– Vamos seguindo para o castelo. – Nicardo apareceu.
– Vamos. – Alexis não tirava os olhos das pessoas ao redor.
– Isso aqui está mais sinistro do que filme de terror japonês. – deixei escapar.
– O que? – Alexis perguntou confuso.
– Esquece. – fiz um sinal com a mão – Vamos seguir com o plano.
– Espere! – Nicardo entrou na minha frente, o que me fez acabar derrubando Alexis perto de uma árvore.
– Está maluco? – Alexis falou baixo.
– Olhe. – Nicardo se agachou.
Os portões do castelo estavam sendo abertos. Ouvimos sons de cavalo e nos deparamos com uma cena tão bizarra quanto a do povo estranhamente frio. Uma fumaça preta surgiu no ar e foi se transformando em um imenso corcel negro. Logo em seguida asas tão imensas quanto o animal surgiram e uma imagem começou a se formar, montada no cavalo. Era Bianor. Meu coração gelou quando vi aquela imagem subindo aos céus e sobrevoando a cidade. Mas o susto de ser descoberto passou assim que ele sumiu da mesma forma que apareceu. A coisa estava realmente ficando séria.
– Acho melhor esperar pelo sinal de Neandro. – falei.
– Mas que cheiro estranho é esse? – Nicardo franziu o nariz – Está vindo da direção do Alexis.
– O que? – Alexis se assustou – Não fui eu. Juro. Eu não faço essas coisas na frente dos outros.
– O que é isso debaixo da sua mão? – perguntei.
– O que? – Alexis se levantou.
– É uma flor! – falei – Você esmagou a pobrezinha.
– E era ela que estava soltando esse cheiro. – Nicardo cheirou a flor.
– Olhe! – falei um pouco alto – Ela está voltando ao normal.
– Que planta estranha! – Alexis falou.
– De que espécie ela pertence? – perguntei.
– Nunca vi antes. – Nicardo fitava a flor.
– Corram! – Alexis gritou.
Virei rapidamente. Havíamos sido descobertos. Os guardas que estavam vigiando o castelo estavam vindo em nossa direção. Não tínhamos outra saída além de seguir o conselho de Alexis. Avistei Neandro e Linfa de longe. Eles não haviam sido descobertos, mas já tinham reparado que o plano não estava correndo como o planejado.
– E agora? – gritei enquanto corríamos.
– Acho que teremos que lutar. – Nicardo respondeu.
Nicardo parou e virou uma cambalhota se pondo frente a frente com os guardas. Ele puxou uma das espadas da mão de um dos guardas e começou a defender os golpes que já começavam a ser investidos contra ele e contra nós.
Vi Neandro fazendo sinais para Linfa e um dos soldados que estava no nosso submarino repetindo para os demais. Agora a coisa iria ficar feia de verdade.
Neandro retirou o disfarce e veio nos ajudar. Logo outros guardas de Calidora apareceram e as pessoas que estavam na praça simplesmente pararam tudo o que estavam fazendo e ficaram observando, de longe, toda a confusão.
Thalassa também entrou em cena e logo em seguida Amadeus também mostrou as caras e por fim Linfa apareceu, com duas grandes espadas na mão. Não sabia onde ela havia encontrado, mas eram belas espadas. E para minha surpresa, ela sabia usar-las muito bem.
Linfa lutava com um hibrido de delicadeza e fúria que nunca havia visto antes. O modo como ela se defendia e atacava era impressionante. Ela não parecia a mesma Linfa que eu conhecia. Mas mesmo com passos e golpes delicados, havia algo de feroz em seus ataques. Seus olhos pareciam os de um tigre de olho em sua presa.
Amadeus e Thalassa estavam lutando em conjunto com alguns soldados, fazendo golpes que se fossem ensaiados não sairiam tão perfeitos. A sincronia era perfeita. Ela saltava dos braços de um para os de outro, pegando impulso enquanto atacava pelos ares. Amadeus usava as costas de um soldado para por mais força em seus chutes, enquanto suas espadas batiam com a mesma força nas armaduras, perfurando-as.
Neandro, Alexis e eu estávamos apenas nos defendendo. Haviam mais guardas ao nosso redor e qualquer movimento precipitado poderia ser perigoso. Tentávamos nos afastar, mas estava muito difícil. Os guardas não davam trégua e atacavam com toda a força. Havia perdido Nicardo de vista e desejava que ele estivesse por perto, preparando algo para nos ajudar.
Notei que mais soldados estavam aparecendo. A batalha já estava ficando fora do controle. Não queria que chegasse a tanto.
Thalassa e Amadeus começavam a ter dificuldades para lutar. Por varias vezes quase foram atingidos, mas não demorou muito para Linfa aparecer e dar um reforço. Era estranho, mas eu não estava conseguindo pensar em nada. Minha mente estava completamente perdida e desesperada. Só conseguia defender e defender.
– O que está havendo aqui? – falei um pouco alto.
– A situação está ficando insustentável. – Neandro cochichou para ele mesmo.
– Lutamos? – sugeri.
– Não há outra alternativa. – Alexis respondeu.
E realmente não havia. Precisávamos sair daquilo ou acabaríamos sendo derrotados pelo cansaço.
Consegui executar uma magia de água e afastar os guardas. Alexis aproveitou a deixa para tomar distancia e fôlego. Neandro fez o mesmo. Ataque com mais golpes d’água e Alexis começou a atacar com suas espadas. Neandro usava suas espadas de gelo. Começamos a ter alguma vantagem, mas ainda era muito pouco. Toda aquela situação não estava ajudando a me fazer ficar concentrada na luta. Acabei perdendo o equilíbrio.
– Beatriz! – Neandro gritou – Cuidado!
Uma espada veio em minha direção. Se Neandro não tivesse avisado teria me acertado, mas ainda sim fui atingida de raspão no ombro. Alexis correu e me empurrou para trás dele, atacando os guardas que estavam na minha frente. Levantei e tomei fôlego antes de defender outro golpe que veio feito relâmpago. A situação estava ficando perigosa demais e iríamos perder se continuássemos neste ritmo. Até que aconteceu.
– O que é isso? – Neandro gritou. Um berro aterrorizante ecoou pela praça.
– Não creio no que vejo! – Alexis caiu para trás. Literalmente.
Todos de repente pararam a batalha e ficaram desesperados com a imagem que surgia. Uma sombra que ocupava toda a praça. Um dragão enorme. Todos se desesperaram.
A correria foi geral e neste momento acabamos virando algo insignificante. Ao que parecia aquilo não pertencia a Calidora e os guardas começaram a atacar o monstro que se aproximava.
– Rápido e a nossa deixa! – Neandro sussurrou enquanto fazia alguns sinais. Todos entenderam.
Alguns guardas tentaram impedir nossa fuga, mas o pandemônio que se formou era tão grande que acabamos conseguindo nos livrar deles com facilidade.
Corremos o mais longe que pudemos. Quanto mais andávamos, mas surpresas tínhamos com as mudanças que ocorreram em Calidora. Chegamos até uma estrada de terra, que levava em direção a uma floresta – ou o que havia restado dela. Resolvemos nos esconder por ali temporariamente.
– Estão todos bem? – Neandro perguntou.
– Sim. – quase todos responderam em coro.
– Ótimo. – Neandro suspirou aliviado – Os submarinos ficaram vazios?
– Não. – um dos soldados respondeu – Achamos melhor mandar apenas metade dos homens. Ainda tem soldados escondidos.
– Bom. – Neandro deu outro suspiro de alivio – Realmente muito bom.
– Mas de onde surgiu aquilo? – perguntei.
– Seja lá de onde, veio em boa hora. – Neandro estava ofegante – Só espero que isso não seja mais um problema para nós. Estão todos aqui.
– Acho que sim. – Linfa olhava entre os soldados.
– Espere um minuto! – também estava observando – Onde está Nicardo e Amadeus?